São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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Zumbi e o stalinismo tardio

JANER CRISTALDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Apesar dos ares liberais deste final de século, o Brasil, reputado como país sincrético e tolerante, parece não estar preparado para enfrentar uma realidade que faz parte do seu dia-a-dia, o homossexualismo. Enquanto esta preferência é permissível -e até admirada- quando exercitada por intelectuais, artistas, jornalistas, logo vira infâmia quando imputada a heróis. Que o diga o antropólogo Luiz Mott.
Por ter escrito que viu indícios de homossexualismo na biografia do escravo Zumbi -morto há três séculos-, teve sua casa e carro pichados e achou oportuno pedir proteção de vida às autoridades federais. A reação histérica de alguns líderes do movimento negro suscita algumas perguntas. Estaremos diante de uma nova inquisição, se é que ela morreu algum dia? Querem os xiitas tupiniquins criar um novo Rushdie?
Mott lança uma hipótese: de certos indícios da vida -e particularmente, da morte- de Zumbi, seria possível inferir que o líder de Quilombo fosse homossexual. Escândalo nacional, morte ao Mott! No fundo deste alarido, há um stalinismo tardio, uma vontade poderosa de censura, a de impedir qualquer pesquisa que possa eventualmente macular a imagem de um candidato póstumo a herói.
Admitamos que Zumbi tenha sido homossexual. Em que empana este fato sua luta pela libertação dos seus? Homossexual foi Sócrates, e isto em nada desmerece sua condição de pensador ou soldado. Também o foram Alexandre e Alcebíades, e duvido que seus inimigos lhes tivessem menos respeito por tal opção. Júlio César era conhecido em Roma como "marido de todas as mulheres e mulher de todos os maridos". Homossexuais foram Cervantes e García Lorca. E daí? Vamos jogar à fogueira o Quixote, os poemas de Lorca?
Quando acossados, os homossexuais costumam listar estes colegas ilustres, o que, no fundo é uma espécie de sofisma. Pois para cada homossexual de talento corresponderão milhares de medíocres. Como também ocorre com os heteros, com negros ou brancos, ricos ou pobres, já que talento não se compra em farmácia.
Homossexuais são muitos líderes religiosos e políticos do mundo contemporâneo, tanto na Europa como no Brasil, e não será por esta condição que os julgaremos. Afinal, não vivemos naquela ilhota ao norte da Europa, cujos líderes são vigiados mais pelos feitos de cama do que pela declaração de bens. Por que então este escândalo todo em torno da hipótese de Zumbi preferir rapazes a moças?
Coincidentemente, a polêmica eclode nos mesmos dias em que o episcopado nacional, reunido em Itaici, repudia toda tentativa de legalizar o casamento entre homossexuais. Diz o cardeal-arcebispo d. Aloisio Lorscheider que tais uniões contrariam as leis da natureza. "Respeito a pessoa do homossexual, mas acho inaceitável que um homem se case com outro, ou uma mulher com outra, porque isso contraria as leis da natureza humana, que não foram inventadas pela Igreja. Elas foram dadas aos homens por Deus."
Até pode ser, mas isso para quem acredita em Deus. Não vivemos, pelo menos por enquanto, em um Estado teocrático. Se os crentes no Deus católico acreditam que as ditas "leis da natureza" emanam da deidade, muito bem, que continuem buscando o sexo oposto para suas relações. Ocorre que vivemos não em um Irã tropical, mas em uma sociedade laica. Quando Deus extrapola suas funções de kosmocrator, passando a vigiar a cama de cada criatura, não estamos mais ante uma teodicéia, mas um pacotaço ético jogado sobre a cabeça de cada cidadão.
Por outro lado, além das hipotéticas leis criadas pelo tal de Deus, há outras leizinhas bem mais prosaicas criadas pelo homem, que podem tanto melhorar como infernizar a vida de um mortal. Quando se busca regulamentar o casamento homossexual, a preocupação maior não é a solenidade com véu e grinaldas, mas questões de herança e previdência.
Diz D. Aloisio: "Nem a ciência sabe explicar o que leva os homossexuais a serem dessa maneira". Não sabe nem jamais vai saber. Só saberá no dia em que descobrir por que alguém prefere pêssego em vez de goiaba, Mozart a Wagner, filé passado ou malpassado, mistérios que nenhuma fisiologia do gosto jamais descobriu.
A única maneira de explicar "o que leva os homossexuais a serem dessa maneira" -com o perdão de Sua Eminência, é degustar o fruto proibido. Antes disto, cientista algum pode falar de cátedra sobre o assunto. Espírito científico requer coragem e mente aberta.
É quase inacreditável que, numa sociedade aberta como a brasileira, pessoas cultas em função do próprio ofício ainda ousem empunhar a ciência para a defesa de ranços medievais. Que o martírio vivido por Oscar Wilde fique para sempre sepultado no tempo. André Gide teve a sorte de viver em sociedade menos puritana. A propósito, vale a pena relatar uma anedota -no sentido europeu da palavra- a seu respeito. Quando andava buscando um "mictório interessante" pelas ruas de Roma, alguém o alertou para não se expor daquela forma. Gide estava tranquilo: "Meu Prêmio Nobel me dá cobertura".
Mott desenterra uma afirmação do poeta Gregório de Matos, de que Cristo seria "nefando, que assim eram chamados os gays de então. A hipótese tem rondado a mente de todo estudioso que estuda a figura humana de Jesus. Homem sendo, alguma sexualidade deveria ter. Tendo sexualidade, se não a exerceu com mulheres, a exerceu com homens, ou solitariamente, ou destas três formas. Em caso negativo, seria um anormal para quem o vê como homem. Ou não teria assumido plenamente a condição humana, para quem o vê como Deus. Urge uma perestroika no Vaticano, ou o Ocidente entrará no próximo milênio sob a sombra de um deus castrado.
Curiosamente, a fúria inquisitorial assestada contra Mott parte de grupos negros, pelo menos por enquanto. O que demonstra o que há muito se sabe: preconceito não é privilégio de raça ou cor. No ritmo em que marchamos, só falta apelar a uma antiga prática da Santa Sé, queimar em efígie Gregório de Matos.

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