São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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Da teoria do autoritarismo ao Deus Mercado

A teoria de FHC achou no neoliberalismo seu porto de chegada

EMIR SADER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A teoria do autoritarismo de Fernando Henrique Cardoso se constituiu na interpretação mais desenvolvida e na de maior influência sobre o período da ditadura militar no Brasil. A evolução de sua interpretação é significativa da transformação ideológica operada no país e, particularmente, em meios políticos e intelectuais da antiga oposição à ditadura.
No transcurso da história brasileira, segundo FHC, o autoritarismo sempre havia estado presente. Chegado à sua versão tecnocrática, a pergunta chave para sua compreensão estaria em saber: "Quem tira quanto de quantos e de que maneira". Na sua resposta, FHC coloca uma burguesia de Estado como a classe hegemônica no autoritarismo tecnocrático. A existência desse setor se torna o eixo da visão da teoria do autoritarismo sobre o regime militar brasileiro.
A existência de uma burguesia de Estado estaria configurada a partir do fato de que o controle das empresas estatais não se daria conforme critérios públicos, mas de forma privada. Os dirigentes das empresas estatais se transformariam assim em suportes sociais do capital: "Se está formando uma camada de dirigentes de empresas que não é burocrática em sentido estrito" (1).
Sua ideologia seria o expansionismo estatal, o que precisamente definiria objetivos autônomos, típicos de uma classe social. "(...) se formou um setor de classe no conjunto dos interesses burgueses" -ou seja, capitalistas, que passou a disputar hegemonia no bloco de poder formado pelas classes dominantes. (2) Assim nasceria a burguesia de Estado.
A partir dessa caracterização, FHC passa a definir globalmente esses regimes como autoritários. Aqui se situa sua conceituação mais significativa e, ao mesmo tempo, mais problemática, teórica e politicamente: "Eu penso que os regimes deste tipo, nas sociedades dependentes, encontram sua raison d'être menos nos interesses políticos das corporações multinacionais (que preferem formas de controle estatal mais permeáveis a seus interesses privatistas) do que nos interesses sociais e políticos dos estamentos burocráticos que controlam o Estado (civis e militares) e que se organizam cada vez mais no sentido de controlar o setor estatal do aparelho produtivo" (3).
A cautela das afirmações de FHC não impede que ele se comprometa inevitavelmente com a categoria de burguesia de Estado, sem ter dado argumentos e provas suficientes que lhe dêem consistência, em torno do qual existe um intrincado debate teórico que não poderia ter sido evitado, para quem quer se valer de forma tão central desse conceito.
A própria caracterização dos interesses das corporações multinacionais em favorecer formas estatais não ditatoriais, que seriam mais permeáveis a seus interesses privados, é prisioneira de uma visão esquemática e externa da relação Estado/sociedade civil, que afeta toda a teoria do autoritarismo e do totalitarismo.
Desconhece, neste caso, as formas de articulação direta entre os interesses multinacionais privados e o Estado militar, valendo-se precisamente do seu caráter ditatorial, que lhe permitiram realizar melhor seus interesses de reprodução do capital do que durante um regime parlamentar. Implica também no desconhecimento de como a acumulação privada se valeu do apoio estatal, exatamente através das empresas estatais, seus subsídios, isenções, créditos, a infra-estrutura custosa e com maturação longa no tempo e todas as vantagens que propiciou ao desenvolvimento do grande capital privado.
Em torno do Estado brasileiro -segundo FHC-, teriam se defrontado interesses monopolistas, interesses da burguesia local e interesses dos "funcionários" e "técnicos", que aparentemente teriam triunfado, transformando-se em fração hegemônica, sob a forma de burguesia de Estado. Em outro lugar, FHC afirma que "(...) os Estados locais servem de suporte político mais para os `funcionários', os técnicos, os militares, os fragmentos desgarrados da burguesia local não integrados à internacionalização do mercado do que aos grandes interesses burgueses internacionalizados" (4).
Foi sob essa forma que a teoria do autoritarismo permitiu a articulação da ampla aliança de classes que se opôs ao regime militar em sua última fase e, principalmente, tornou possível a transição política, sob a forma conservadora que ela assumiu. Uma ideologia interpela as classes de uma determinada maneira, para compatibilizar seus interesses. No caso da teoria do autoritarismo, interpelou-se toda a sociedade civil como setores igualmente submetidos, discriminados e espoliados pelo Estado autoritário e por sua força dirigente -a burguesia do Estado.
Absolvendo as responsabilidades e a participação do capital privado multinacional e nacional no bloco no poder do regime militar, e descaracterizando este como ditadura, mediante o apelativo "autoritário", estava feita a prestidigitação que permitiria a compatibilização de interesses sociais tão dissímiles quanto aqueles que se opuseram ao Estado "autoritário.
A liquidação do que se conveio em chamar de "entulho autoritário" e, depois, a nova constituição, esgotaram -ou realizaram- o programa político de democratização prometido pela teoria do autoritarismo e assumido pela frente opositora. A operação de hegemonia liberal-conservadora no processo de transição política estava garantida do ponto de vista ideológico e aberto o caminho para sua efetivação.
Mais além do caráter pragmático, empírico e contingente que parece ter assumido a transição política brasileira, a teoria do autoritarismo foi a ideologia que a articulou e definiu a hegemonia nesse processo. Ela possibilitou que se constituísse uma ampla aliança policlassista que, em última instância, definiu os campos e interpelou todos os agentes em função dos critérios que estabeleceu sobre a natureza do regime vigente, quem o dirigia, qual o objetivo da democratização e as formas de sua realização.
Durante cerca de uma década o batismo do regime então vigente como autoritário comandou a política brasileira, ditando quem é quem e redefinindo termos como liberal, democrata, sociedade civil. Por oposição a autoritário, se abrigavam no campo oposto desde o sindicalismo classista até os "liberais autoritários" desgarrados do regime militar, reciclados como dissidentes do regime ditatorial. (Na sua versão final, o antimalufismo serviu como critério reclassificatório e alavanca para a reconversão "liberal" dos até então adeptos da ditadura militar).
A redemocratização apontada pela teoria do autoritarismo se reduzia à desconcentração do poder político em torno do Executivo e à desconcentração econômica em torno do Estado. À sua filiação liberal do ponto de vista político, vinha se agregar uma dimensão que se abria para as correntes neoliberais emergentes.
A definição do alvo da burocracia de Estado como inimigo da democracia funciona como uma espécie de "pega ladrão!": desvia a atenção dos diagnósticos do grande capital privado e seu processo de privatização do Estado -central para entender a ditadura e definir os rumos necessários da democratização, fornece os parâmetros para a hegemonia burguesa na transição democrática, ao mesmo tempo que bloqueia e divide a constituição de uma hegemonia democrática e popular nesse processo.
Uma vez realizada a primeira etapa da democratização -a institucional, conforme os moldes dados pela teoria do autoritarismo-, restava complementá-la através da desconcentração do poder econômico em torno do Estado. Seu aprimoramento, pela privatização e pela desregulamentação (conforme definidos na plataforma eleitoral "Mãos à obra, Brasil") encontrou nas fórmulas neoliberais seu porto de chegada.
Fica mais clara assim a lógica da evolução do pensamento e da prática de FHC, desde sua definição do regime da ditadura militar como um Estado autoritário, passando pela caracterização de uma burguesia de Estado como seu setor hegemônico, até a configuração de uma concepção neoliberal da democratização e da modernização capitalista.
Esta trajetória constituiu o terreno possível para a recomposição do bloco no poder, pela confluência entre a direita tradicional brasileira e um setor oriundo da oposição -inicialmente de corte estatizante, via Cepal e, com a crise fiscal do Estado, sua reconversão do Deus Estado ao Deus mercado, para compor a nova força hegemônica. A teoria do autoritarismo e da burguesia de Estado serviu e serve a esse processo, como ideologia e argamassa desse novo bloco no poder.

NOTAS
(1) "Autoritarismo e Democratização, Ed. Paz e Terra, RJ, 1975, pág. 17
(2) Idem, pág. 18
(3) Idem, pág. 40
(4) Idem, pág. 133

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