São Paulo, domingo, 11 de junho de 1995
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O apavorante vírus 'Webern'

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE CRACÓVIA

Estive na estréia mundial de "Die Wãnde", no Theater An Der Wien, como parte do Festival de Viena. A nova ópera de Adriana Holszky, com libreto de Thomas Kõrner, é baseada na peça "Os Biombos", de Jean Genet. Não fui a Viena exclusivamente para isso, mas para sair da Polônia qualquer desculpa é válida. Iria mesmo que fosse somente para observar uma instalação de velhos pneus semi-incendiados.
Na verdade, "Die Wãnde" não é muito mais que isso: para os ouvidos, todos os clichês de arranhões atonais e serialistas intercalados por instrumentos caseiros de percussão; para os olhos, o diretor Hans Neuefels exauria o repertório de ilustrações irrelevantes e obsoletas para tentar alcançar uma imagem revolucionária, mas ficou nos pneus queimados.
Não tendo achado "uma" linguagem para sua encenação, Neuefels desfilava milhares de imagens, esperando que um dos tiros acertasse o alvo. Infelizmente, acertou no eterno clichê sobre Genet: um lindo garoto atravessa a cena, centenas de vezes, com uma rosa enfiada na bunda, a marca registrada de Genet de "O Diário de um Ladrão" e "Nossa Senhora das Flores". Ela foi exaurida na década de 70 por Lindsay Kemp, por Victor Garcia, por Fassbinder e por absolutamente qualquer grupo de teatro amador que encenava Genet em qualquer parte do mundo.
Ironicamente, a rosa na bunda ainda é uma imagem sucinta sobre a elegância dentro da pobreza, e sobre a beleza dos rejeitados e dejetos. Junto com os tristes palhaços de Beckett, essa imagem parece ter sido um último respiro da linguagem que expressa "para fora" a formalização de uma visão. Depois disso, nada mais para os olhos ou ouvidos, só para o cérebro.
Mas reajo assim ao espetáculo, pois a sua problemática me atinge frontalmente. Como autor de peças e diretor de ópera na Europa, tenho vivido uma exaustiva atividade dentro da música aleatória, serialista, contemporânea, sei lá qual nome dar mais para isso. Não dá mais! Essa "coisa", que inclui a música de Adriana Holszky, não consegue escapar da mais banal convenção que assola a música e, talvez, a arte contemporânea em geral: enforcar ou suprimir qualquer conto, fábula ou parábola.
O compositor contemporâneo está encurralado por um sistema criado por mal entendidos, más traduções e convenções caretas. Os compositores foram pegos por um problema que não os dizia respeito, e que acabou por encalacrá-los num paradoxo entre criar e o ato de resolver os problemas linguísticos intrínsecos ao ato de criar. Tem sido assim há mais de 50 anos. Mas não dá mais samba.
Nesse sentido, o título, "Os Biombos", é a única coisa que soletra honestamente a problemática do isolamento em questão. Desde "Perseu e Andromeda", de Salvatore Sciarrino, que dirigi na Ópera de Stuttgart, em 91, até "Narcissus", de Beat Furrer, na Ópera de Graz, no ano passado, e as intervenções "modernosas" de Luciano Berio na jóia inacabada de Mozart chamada "Zaide", tenho vivido todas as unhas encravadas da produção musical contemporânea.
Estou ensaiando, nesse momento, na Polônia e na Áustria, duas óperas inacabadas. Suspeito que seus autores sofreram antecipadamente dessa questão moderna. Uma é "Doktor Faustus", de Busoni, do início do século, para a Áustria. A outra é "Zaide", de Mozart, que estréia em Florença e na Ópera de Bruxelas. Busoni não acabou seu "Doktor Faustus" pelo mesmo motivo que Mozart não acabou sua "Zaide". O motivo? Ambos se encalacraram no processo excessivo de derramamento de personalidade sobre suas obras. Ambos devem ter se reconhecido demais em todos os personagens, a ponto de não conseguirem distingui-los uns dos outros.
Esses compositores não tinham o aval desse fim de milênio para aplicar seus talentos em auto-indulgências. Desistiram de investir sobre impasses. Dentro do conflito dramático, os personagens têm que ter a liberdade de agir dentro de uma dinâmica própria ou acontece o famoso choque metalinguístico. Se a música toma a própria estrutura da música como base, ele também acontece. É um vírus "Webern", perigoso para aqueles que avançam os territórios cada vez mais teóricos da arte. O resultado parece com um enforcamento de um bebê no cordão umbilical. Nasce e nasce morto.
Só que, uma vez reconhecido o impasse, existem saídas. E a saída consiste numa longa jornada emotiva e aberta ao acaso. John Cage foi o mestre do humor e da "reação pessoal" à academia. Cage não é só uma reflexão intelectual. Assim é também com Duchamp, que não sabia mais para onde levar a pintura, pois olhava em volta e tudo era o que o olho via.
Começou a se entregar ao jogo de xadrez e caminhar longamente pelas áreas pobres de Nova York. Encontrou o seu futuro no chão. Os "ready mades" de Duchamp mudaram o rumo da história e deram ao artista uma função filosófica, profética e intelectual, pois o que o olho achava na rua era o dejeto oficial e exibi-lo parodiava um ciclo de vida humano. Mas o "problema" de Duchamp era típico de uma época e de uma necessidade de inversão de sentidos. Alguns, como Joseph Albers, com seu "Branco Sobre Branco", ou Magritte, com seu "Isso Não É um Cachimbo", o seguiram com humor. Infelizmente, a simplicidade de seu "statement" virou academia e marcou, para sempre, o fim de uma inocência necessária à arte.
Mas os compositores contemporâneos são engajados por academias em cujo epicentro o foco da produção artística continua na dúvida e no desespero de seu autor com sua respectiva linguagem. Ele é um mapa minucioso de sua hesitação. Como as hesitações não estão no plano pictórico, político, universal, e sim num diálogo codificado com a própria obra, eu me pergunto se alguém do mundo de fora ainda se interessa.
Noventa e nove por cento da população não lê música ou sequer compartilha de sua complexidade. O público em geral nem sequer sabe a diferença entre uma tuba e um trombone. Manter um diálogo de "esfriamento sintomático entre a retenção do sopro e a manifestação desenfreada do vento sobre a nota musical" entre esses dois instrumentos é assunto para três ou quatro estudiosos na Universidade de Karlsruhe.
É pretensioso que a composição queira chegar aos limites alcançados pela linguagem falada, escrita e visual. Qualquer ser humano fala e está consciente da fala. Qualquer ser humano entende um trocadilho, uma inversão de sentidos. A música é maior que tudo. Mas para o público será um mistério eterno.
Desnudá-la não resulta em nudez e sim em mais uma página complexa cheia de pontinhos pretos, como qualquer outra. George Crumb e Bryan Ferneyhough chegaram a compor o equivalente musical do visual de Jackson Pollock. As partituras eram lindíssimas de se ver, mas chatíssimas de ouvir. No entanto, qualquer ser humano "entende" e "sente" a explosão de idéias e de rompimentos contidos na obra de Pollock. Seu entendimento termina no ato de enxergá-la. Se quiser chegar a Joyce está enganado sobre sua vocação.
John Cage brincou com a forma dentro da música e dentro da "sonoridade". Mas nunca afirmou que música fosse uma forma aristotélica de entendimento. Stockhausen, por outro lado, o lado europeu, se cercou de uma academia, de um método, e botou a mão na massa. Os europeus, malditos europeus, insistem em transformar a música numa forma aristotélica de entendimento. Ufa! Parece que os europeus esqueceram que, um dia, já foram os descobridores.
Arte é uma forma constante de descobrimento. Mas eles deram vez a sólidos monumentos. Os europeus se cercam de academias, mesmo que seja para estudar e praticar a arte da destruição. Podemos ver a modernidade como um desnudamento dos rituais estabelecidos através dos séculos. Rituais que expressavam uma curiosidade sobre o tamanho do homem e o tamanho do que está em volta do homem. Só que fazer constantes escalas e medições sobre esse tamanho é redundante e pequeno.
Exibir a estrutura junto ao seu objeto e comparar tamanhos não pode mais ser o objetivo. Não é possível que se continue combatendo algo que se combatia no início do século. Combatia-se justamente a falta de investigação nessa área e o excesso de inocência e ilusionismo na chamada "arte". E se Walter Benjamin criticava o artista dos séculos anteriores por terem sido criadores de uma "verdade arbitrária", relativa, o faria pior hoje por terem transformado uma mera especulação em monumentos absolutos.
Talvez a arte tenha chegado perto demais da filosofia. Talvez ela não comporte essa aproximação com seu próprio estudo. Talvez o lugar do artista não seja no centro da arena, ou o centro dela deva pertencer a sua arte. Talvez o excesso de lucidez e exame lhe confiram imposições linguísticas que exaurem seu processo de criatividade antes mesmo de ele tornar-se forma. Talvez o artista deva parar de ser o "explicador" tão sério do universo.
A verdade é que o ser humano mudou pouco no que diz respeito à tradição grega de confronto com a arte como sendo uma linguagem que lhe descreve em contexto, e que por não ser comum na vida cotidiana, lhe dá a dimensão do tamanho das coisas que o cercam.
Música sempre foi maior que nós. Mas se o compositor continuar a aniquilar os valores sedutores da arte, no sentido tradicional do século 20, ele estará, paradoxalmente, trivializando o valor da investigação. Ele estará simplesmente seguindo normas existentes há meio século. Se o compositor quiser deixar visível a estrutura do seu trabalho, terá que repensar o que é que, no ser humano, se manifesta através da música e porquê.
Terá que parar de perseguir a música e voltar a perseguir o ser humano. Terá que repensar suas regras também, pois não existe mais a arte "permissível" e "não permissível". A possibilidade da rejeição já foi um parâmetro importante na vida de um artista. Ironicamente, o desnudamento da arte implicou em sua liberdade total. E ela é apavorante. E agora, o artista ou o compositor se reconhece em ambas as polaridades, vendo o ponto de partida e o de chegada ao mesmo tempo, sem entretempos surpreendentes.
E ver a morte logo ao nascer é compreender demais tudo aquilo que ele deveria compreender através de vivências espaçadas. O foco do artista sairá da prisão do solilóquio. Esse fica melhor em épocas elizabetanas, que resolveram com muito mais humor a questão do ser ou do não ser.

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