São Paulo, segunda-feira, 12 de junho de 1995
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Antologia busca o tempo perdido do cinema

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

François Truffaut notou certa vez que a cada ano se conhece um pouco menos o cinema. Se a afirmação do cineasta/crítico francês precisasse de uma demonstração ela seria, com certeza, ``O Espectador Noturno".
Esta magnífica antologia de textos compilados por Jerôme Prieur e editados em 1993, na França, reúne as impressões de 73 escritores sobre o cinema.
A primeira trata do assombro da descoberta, logo na virada do século 20. A segunda, da ``domesticação" do novo meio, na medida em que, da descoberta, evolui-se para o hábito. Por fim, chega-se à reflexão sobre o que significa sua entrada no universo dos costumes e das artes.
As idéias que circulam na antologia vêm com frequência de nomes consagrados universalmente, como Sartre, Gorki, Kafka, Proust, Benjamin, Mann, Nabokov. Disputam a atenção do leitor com mestres menos populares, mas não menos importantes, como Céline, Pierre Reverdy, Paul Valéry, Michel Leiris.
O momento da descoberta é o que mais evoca essa sensação de perda a que se referia Truffaut.
Hoje, não se sai mais do cinema com a intensa sensação que Sartre descreve em ``As Palavras": ``Que alegria quando a última facada coincidia com o último acorde! Eu ficava extasiado, havia encontrado o mundo onde eu queria viver, eu tocava o absoluto. Que mal-estar, também, quando as luzes se acendiam: eu me tinha rasgado de amor por aqueles personagens e eles haviam desaparecido, levando seus mundos; eu havia sentido a vitória deles nos meus ombros, e no entanto ela era deles, não minha: na rua, eu me sentia a mais."
O mais crítico (e profético) desses cronistas dos primórdios é, porém, Máximo Gorki, o russo.
Em 1896, após ver um espetáculo promovido por Charles Aumont, ele escrevia: ``Não vejo ainda qual é a importância científica da descoberta dos irmãos Lumière, mas sei que essa importância existe, que se poderá usar o cinematógrafo para (...) a melhoria da vida do homem e o desenvolvimento de seu espírito. Isto não encontraremos na casa de Aumont: aqui, só o vício é vulgarizado e estimulado."
Gorki conclui que, provavelmente, a evolução do cinema se dará ``no espírito da casa Aumont-Toulin e Companhia". É tratado muito mais como diversão vulgar que como meio de conhecimento.
No capítulo do hábito, Gustav Janouch reproduz as impressões de Kafka, aliás nada amenas: ``Na verdade é um brinquedo magnífico. Mas não o suporto. Sou um desses seres para quem a vista está em primeiro lugar. Ora, o cinema perturba a visão. A rapidez dos movimentos e a sucessão precipitada das imagens condenam a uma visão superficial. Não é o olhar que prende as imagens, são elas que prendem o olhar."
Proust, no último volume de ``Em Busca do Tempo Perdido", julga o cinema por trazer imagens que não fazem parte da vida, e instauram um tempo arbitrário: ``Uma hora não é uma hora, é um vaso cheio de perfumes, de sons, de projetos e de climas", escreve Proust, para concluir: ``A grandeza verdadeira da arte (...) era encontrar, reaver, fazer-nos conhecer essa realidade longe da qual vivemos, (...) essa realidade que corrermos o grande risco de morrer sem tê-la conhecido e que é, simplesmente, a vida."
Mas, por um desses acidentes de percurso, é a frase de Proust a que melhor exprime o trabalho de Jerôme Prieur: a busca para reencontrar a vida que se escoou nas salas de cinema nestes cem anos.

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