São Paulo, segunda-feira, 12 de junho de 1995
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Ricupero: um ano depois

MARCOS GALVÃO; SÉRGIO DANESE

No Brasil, pouquíssimos homens públicos foram julgados com tanta dureza por um momento infeliz
MARCOS GALVÃO e SÉRGIO DANESE
Um ano atrás, em junho de 1994, o Brasil entrava na reta final da preparação para a chegada da nova moeda. Convocado pelo presidente Itamar Franco, o embaixador Rubens Ricupero era um desconhecido para a imensa maioria dos brasileiros quando assumiu o Ministério da Fazenda, no mês de abril. Tinha, porém, atrás de si, uma brilhante carreira no Itamaraty -que o levou a dois dos mais importantes postos de nossa diplomacia, a chefia das missões em Genebra e Washington-, e acabava de deixar o cargo de ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal.
Com a mesma equipe e o mesmo espírito formados por seu antecessor, o hoje presidente Fernando Henrique Cardoso, Ricupero estava encarregado de levar adiante o programa de estabilização econômica no momento mais decisivo.
Sem descuidar dos muitos outros encargos do ministro da Fazenda, percebeu de imediato que sua missão principal seria procurar explicar à população, às pessoas mais simples, o sentido das mudanças econômicas em curso -corriam os tempos da URV- e, sobretudo, o que iria acontecer no dia em que se realizasse a substituição da moeda. Começava, talvez, a mais intensa campanha de esclarecimento da opinião pública já feita por um governo no Brasil.
Ricupero quis demonstrar aos brasileiros que valia a pena apostar naquele esforço. Partiu de três pressupostos básicos: primeiro, que o governo tem o dever de manter a sociedade informada; segundo, que há um amplo espaço para a comunicação entre o Estado e a coletividade e que o cidadão espera e recebe muito bem a orientação construtiva do governo; terceiro, que o êxito do programa de estabilização dependeria fundamentalmente da participação de cada indivíduo, nos atos mais simples do dia-a-dia, como fazer compras, exigir troco, procurar o melhor preço, esperar para comprar, pedir nota fiscal, exercer as liberdades e direitos do consumidor.
Entendeu que a economia de um país é o somatório de ações e decisões cotidianas, desde as complexas atuações dos grandes agentes econômicos e do chamado ``mercado" até o comportamento de cada consumidor. Pôs todo o seu esforço em esclarecer e mobilizar: viajou pelo Brasil, falou sobre o Real e procurou ouvir os diversos segmentos da vida nacional.
Sem promessas inexequíveis ou concessões incompatíveis com a consistência do programa de estabilização, visitando sindicatos e reunindo-se com empresários para explicar por que não poderia atendê-los, falando às donas de casa, aos aposentados, aos mais pobres, Ricupero teve participação importante no estabelecimento de um consenso nacional, mais maduro e permanente, em apoio à certeza de que sem acabar com a inflação não há salvação. E, em grande parte, esse consenso tão necessário nasceu de um sentimento coletivo de participação que o então ministro da Fazenda ajudou a fortalecer.
A maioria dos leitores concordará com essa avaliação. Todos os que tiveram a chance de conhecê-lo sabem que se trata de uma das mais íntegras e ilustradas personalidades que já passaram pela vida pública deste país. Mesmo aqueles que não o encontraram pessoalmente, mas tiveram o interesse de acompanhar o seu trabalho como diplomata e professor, e nos dois cargos ministeriais que ocupou, puderam ver e intuir as qualidades de Ricupero. Que dizer, então, de quem, como nós, trabalhou anos e anos ao seu lado?
Durante os meses em que esteve no Ministério da Fazenda, no entanto, a presença constante nos meios de comunicação, o retorno intenso que recebia a todo momento de milhares de brasileiros, o cansaço decorrente de uma cruzada sem trégua, mas necessária, cobraram um altíssimo preço.
Num país em que quase ninguém até hoje foi punido por graves danos cometidos até mesmo contra o patrimônio da sociedade, pouquíssimos homens públicos foram julgados com tanta dureza por um momento infeliz. De outra parte, jamais um homem público entre nós foi capaz de transformar a fragilidade humana em tal força de espírito, na coragem de reconhecer o erro e pedir desculpas diante das câmeras e microfones, como ele fez naquela manhã de domingo, dia 4 de setembro de 1994, depois de se ter demitido do cargo.
A história haverá de fazer justiça. Nove meses passados desde a sua saída do Ministério da Fazenda, os fatos confirmam que nenhum agente econômico, nenhum cidadão que tenha levado em conta as palavras de Rubens Ricupero para decisões foi induzido em erro. Ele jamais traiu a confiança daqueles que o ouviram e acreditaram nele. Ao contrário, sempre pediu paciência aos brasileiros quando os próprios índices oficiais tardavam em livrar-se da inflação passada e ameaçavam gerar descrença e desmobilização. Lembrou a todo momento que estávamos longe da vitória final, que deveríamos evitar a euforia; que estávamos apenas ``no início, do começo, do princípio".
Este é o depoimento que, com humildade, quisemos oferecer. Depoimento que nasce de um dever. Não o dever de ex-alunos, de colegas mais jovens, dos amigos de 15 anos. E sim o dever do brasileiro, do cidadão, do servidor público que teve a ventura de trabalhar e aprender com Ricupero, de estar ao seu lado nos instantes mais felizes e nas horas mais difíceis, de seguir o exemplo de um homem exemplar, cuja inteligência e seriedade enriquecem o país que tem o privilégio de contar com ele.

MARCOS GALVÃO, 36, diplomata, é conselheiro da Embaixada do Brasil em Londres (Inglaterra). Foi assessor especial do Ministério da Fazenda (governo Itamar Franco).

SÉRGIO DANESE, 40, diplomata, é conselheiro político do Ministério das Relações Exteriores. Foi porta-voz do Ministério da Fazenda (governo Itamar Franco).

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