São Paulo, segunda-feira, 12 de junho de 1995
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Uma coisa sem nome

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Vinte e três anos atrás, ao terminar um romance, antes mesmo de publicá-lo, prometi a mim mesmo nunca mais escrever ficção. Vinha de uma pedreira profissional: nove romances em menos de nove anos. Se fosse um sujeito equilibrado, daria um tempo e faria o décimo. Fui radical como o corvo: ``Nunca mais".
Agora, sobrevivendo a uma pedreira sentimental que me manteve noites acordado, depois de esgotar todas as formas de passar o tempo, comecei um troço que, de repente, ficou parecendo um romance. E logo surgiu o problema do título. Tenho dificuldades para nomear as coisas, sejam elas reais ou não. Até hoje cismei que ``galinha" não devia se chamar galinha mas outra coisa, sei lá qual.
Nessas horas sempre lembro uma cena do ``Macbeth". Ele encontra três bruxas mexendo num caldeirão e pronunciando palavras estranhas, palavras de bruxa mesmo. Macbeth pergunta: ``What is 't you do?" (O que estão fazendo?). As bruxas respondem: ``A deed without a name" (Uma coisa sem nome).
É isso aí. O troço que estava fazendo era uma coisa sem nome. Como dar nome a uma mistura de asas de morcego, línguas de cobra, patas de lagartixa e sangue de coruja? No caso de Macbeth, a vida dele ficou bem mais complicada depois desse encontro com as bruxas. No meu caso, ainda não sei. Melhorar não vai, piorar sempre é possível.
Depois de exatos 21 dias, ou melhor, 21 noites, numa luta braçal com um 486 SyncMaster 3 -com o qual mantenho tumultuado relacionamento-, botei não um fim à coisa sem nome, mas uma data.
Só então descobri que o caldeirão produzira, além da coisa sem nome, um problema para mim. O que fazer de uma coisa sem nome? Desde o meu primeiro livro tenho um título guardado que nunca usei: ``A Casa do Poeta Trágico". É uma casa em Pompéia, muita visitada porque tem uma inscrição no pórtico: ``Cave canem", cuidado com o cão. Seria também um excelente título para uma coisa sem nome.

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