São Paulo, terça-feira, 13 de junho de 1995
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Petrobrás já foi a nossa mãe-virgem

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Eu tinha uns sete anos quando isto aconteceu. Entro no banheiro de meus pais e, não sei por que intuição infantil, sei que no armário da pia há algo que eu não posso ver. Mexo numa caixinha de papelão e, no chão de ladrilho, se espalham "camisas-de-vênus". Eu não sabia o que era aquilo (bolas de encher?), mas sinto que estava no chão um mistério. Naquele tempo, a "camisa-de-vênus" (oh, poético nome estelar...) era um indício de pecado. Hoje nas TVs, é um aparelho ideológico do Estado. Era uma linda metáfora, hoje esquecida pelo eufemismo "camisinha". Trêmulo, eu seguro um daqueles nenúfares brancos na mão, como um crime. A "camisa-de-vênus" não tinha, na época, o aspecto diáfano dos látex de hoje. Era borracha espessa, quase um objeto "art déco". E percebi neste claro instante (quem me contou?) que minha mãe não era virgem, que algo se passava sem minha presença. Fui tomado de um grande vazio, ciúme e medo.
Um vento de orfandade me bateu ali no banheiro de subúrbio. Fiquei infeliz e senti que minha infância começava a acabar.
Neste mesmo dia, lá fora no Brasil, o pai de FHC, general Leônidas Cardoso, começava a luta pelo monopólio do petróleo, em pleno governo Dutra.
Eu, sofrendo de uma dor nova, andei pelo quintal entre as galinhas e até hoje me lembro desta solidão de "órfão".
Pois este foi o exato sentimento que teve Almino Affonso na Câmara, quando subiu para defender o monopólio semana passada, com os olhos molhados e o coração na boca. Em 1948, eu ando pelo quintal de terra preta e choro perto da velha mangueira. E a mesma dor vejo no pobre petroleiro de Cubatão, chorando, agarrado na bandeira: "Temos de impedir que invadam a pátria!"
No dia seguinte, comunico a um amigo daquela infância remota que os bebês eram feitos pela relação sexual. Meu amigo quase me bate: "Que é isso, cara, só se for tua mãe! Minha mãe não faz estas coisas não!"
A reação é igual a de Brizola e Lula (as divergências cessam diante do "inimigo" externo), de Waldir Pires tantos outros que ainda acham que suas mães conceberam por graça do Espírito Santo. Vejam como os cutistas invadiram a Câmara, quebrando vidros para impedir o "estupro".
Lembrei de uma peça que dirigi na UNE em 63, que começava com o hino: "A Petrobrás é a nossa primeira vitória...!" Fiquei com saudades do meu mundo tão quentinho, da esquerda dos anos 60 e vejo que o Brasil era uma espécie de "continuação" da casa da gente, um prolongamento da família.
Pensávamos no Brasil como uma casa de família: havia a mãe (a pátria), havia o pai (o Estado) que devia defender os filhos e a esposa dos inimigos da rua (e do exterior) e havia os inimigos terríveis, desde os paraguaios do fim-de-século até os imperialistas norte-americanos. A pátria era uma deusa virgem entre cachoeiras e o Estado era um lugar cheio de homens de terno ou farda que tinham de defendê-la contra os "tios-sams" estupradores. A Petrobrás nestes 40 e tantos anos teve o papel de encarnar a nacionalidade. Sua força simbólica é imensa até hoje. Vejam como tantos apelaram para FHC ter "consciência" e poupar a "mãe", tão amada pelo general Cardoso. O símbolo é fortíssimo: altas torres fálicas cavam as "entranhas da pátria" e delas tiram o sangue negro. O leite negro jorra do "seio" da nação, alimento de todos os filhos (não interessa o prejuízo da empresa; interessa a fantasia). As sondas cavam num vai e vem o ventre da terra, cobrindo de óleo negro os petroleiros heróicos de torso nu, protegendo a pátria como soldados. Lembro do orgulho que tive em 13 de março de 64, no comício de Jango, com a tarde iluminada pelas tochas dos petroleiros. "Oh pátria adorada!"
Hoje sou um pobre órfão. Fui perdendo o inocência e ficando desamparado pelos anos afora. Tivemos 64, 68, tivemos a iluminação das drogas dos 70 (que falta faz um LSD na cabeça de um xiita do PT... Ah, um Marcos Sokol doidão...), tivemos a tortura, tivemos dores-de-corno, tivemos depois o fim da URSS.
E hoje vejo com lancinante certeza que as esquerdas da velha-guarda não querem é perder a inocência, mais do que perder a Petrobrás. Não querem perder a infância "quentinha" de um mundo simplista. O mais precioso bem da velha esquerda é o sentido. O mais amado tesouro da velha-guarda trotskista (oh, súbita ternura pela fé de um Rui Falcão) é uma revolução linear como uma história realista-socialista, uma solidariedade nacional-cristã de "companheiros" (doce palavra) unidos contra o inimigo que "comprou" a alma de FHC.
O grande amor da velha-guarda é uma saudade imensa dos tempos lógicos em que chegaríamos a um futuro claro. Odiamos este mundo que temos de engolir, feito de fluxos e chips, constelado como uma teia e não reto como o trem da história indo para o bem!
Temos saudade da idéia de "solução". Hoje não há mais. Tínhamos pai (até pais ferozes como Médici eram preferíveis à orfandade), tínhamos mãe, éramos irmãos. Hoje só esta insustentável leveza do ser do mercado, como um corpo esquartejado que lembra a morte. A esquerda velha-guarda estava protegida até da morte. Lembro de um amigo me segredando: "A morte é uma ilusão burguesa". O homem socialista se perde no todo e não morre. É um ser social, um ser para o outro. Marx nos dava até a vida eterna!
Hoje sou um pobre-diabo entre fluxos de capital, lutando para não ser excluído.
A época "familial" da política acabou com Collor, que encerrou um ciclo, deixando a "mãe-pátria-amada" em coma no hospital, abandonada pelos filhos.
Sobrou para FHC a tarefa árida de "desconstruir", como um psicanalista. E teve de se aliar nisto àqueles que nunca pensaram no todo, os individualistas da ex-UDN, acostumados à orfandade dos interesses frios. Casualmente, há neles a modernidade oportuna do pensamento parcial.
Por outro lado, há uma grande dor no mundo "múltiplo" de hoje. Há um gosto de tragédia neste universo fraturado. Antes, o Brasil era uma mãe virgem, Nossa Senhora, e nós os filhos de Deus, que era brasileiro. A idéia de monopólio tinha a tranquilidade sólida de uma coisa só, una, de um lar de classe média, de monogamia. O monopólio garantia a virgindade da mãe-pátria ou, ao menos, uma fidelidade ao pai-Getúlio.
Hoje, estamos mais adultos e teremos que construir nosso destino com a desmontagem contínua das ilusões históricas. O Brasil tem uma história de costas, evoluindo pelo que perde e não pelo que ganha. O Brasil se descobrirá por subtração, não por soma.
Chegaremos a uma idéia de país, quando as desilusões chegarem a ponto zero. Então, raspados de sonhos loucos, descobriremos que este mínimo, este resto somos nós. É melhor? É. Mas não importa. Não queremos. Temos saudades do passado quentinho do sentido. Saudades do Matão...
Por isso Almino Affonso não aguentou e chorou. Por isso a vaga melancolia do fim do monopólio...
Por isso, quando peguei trêmulo as "camisas-de-vênus art déco", em 1948, tive a mesma dor de orfandade que outro dia bateu no peito emocionado de Lula se abraçando na Câmara ao velho Brizola.

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