São Paulo, terça-feira, 13 de junho de 1995 |
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Petrobrás já foi a nossa mãe-virgem
ARNALDO JABOR
Um vento de orfandade me bateu ali no banheiro de subúrbio. Fiquei infeliz e senti que minha infância começava a acabar. Neste mesmo dia, lá fora no Brasil, o pai de FHC, general Leônidas Cardoso, começava a luta pelo monopólio do petróleo, em pleno governo Dutra. Eu, sofrendo de uma dor nova, andei pelo quintal entre as galinhas e até hoje me lembro desta solidão de "órfão". Pois este foi o exato sentimento que teve Almino Affonso na Câmara, quando subiu para defender o monopólio semana passada, com os olhos molhados e o coração na boca. Em 1948, eu ando pelo quintal de terra preta e choro perto da velha mangueira. E a mesma dor vejo no pobre petroleiro de Cubatão, chorando, agarrado na bandeira: "Temos de impedir que invadam a pátria!" No dia seguinte, comunico a um amigo daquela infância remota que os bebês eram feitos pela relação sexual. Meu amigo quase me bate: "Que é isso, cara, só se for tua mãe! Minha mãe não faz estas coisas não!" A reação é igual a de Brizola e Lula (as divergências cessam diante do "inimigo" externo), de Waldir Pires tantos outros que ainda acham que suas mães conceberam por graça do Espírito Santo. Vejam como os cutistas invadiram a Câmara, quebrando vidros para impedir o "estupro". Lembrei de uma peça que dirigi na UNE em 63, que começava com o hino: "A Petrobrás é a nossa primeira vitória...!" Fiquei com saudades do meu mundo tão quentinho, da esquerda dos anos 60 e vejo que o Brasil era uma espécie de "continuação" da casa da gente, um prolongamento da família. Pensávamos no Brasil como uma casa de família: havia a mãe (a pátria), havia o pai (o Estado) que devia defender os filhos e a esposa dos inimigos da rua (e do exterior) e havia os inimigos terríveis, desde os paraguaios do fim-de-século até os imperialistas norte-americanos. A pátria era uma deusa virgem entre cachoeiras e o Estado era um lugar cheio de homens de terno ou farda que tinham de defendê-la contra os "tios-sams" estupradores. A Petrobrás nestes 40 e tantos anos teve o papel de encarnar a nacionalidade. Sua força simbólica é imensa até hoje. Vejam como tantos apelaram para FHC ter "consciência" e poupar a "mãe", tão amada pelo general Cardoso. O símbolo é fortíssimo: altas torres fálicas cavam as "entranhas da pátria" e delas tiram o sangue negro. O leite negro jorra do "seio" da nação, alimento de todos os filhos (não interessa o prejuízo da empresa; interessa a fantasia). As sondas cavam num vai e vem o ventre da terra, cobrindo de óleo negro os petroleiros heróicos de torso nu, protegendo a pátria como soldados. Lembro do orgulho que tive em 13 de março de 64, no comício de Jango, com a tarde iluminada pelas tochas dos petroleiros. "Oh pátria adorada!" Hoje sou um pobre órfão. Fui perdendo o inocência e ficando desamparado pelos anos afora. Tivemos 64, 68, tivemos a iluminação das drogas dos 70 (que falta faz um LSD na cabeça de um xiita do PT... Ah, um Marcos Sokol doidão...), tivemos a tortura, tivemos dores-de-corno, tivemos depois o fim da URSS. E hoje vejo com lancinante certeza que as esquerdas da velha-guarda não querem é perder a inocência, mais do que perder a Petrobrás. Não querem perder a infância "quentinha" de um mundo simplista. O mais precioso bem da velha esquerda é o sentido. O mais amado tesouro da velha-guarda trotskista (oh, súbita ternura pela fé de um Rui Falcão) é uma revolução linear como uma história realista-socialista, uma solidariedade nacional-cristã de "companheiros" (doce palavra) unidos contra o inimigo que "comprou" a alma de FHC. O grande amor da velha-guarda é uma saudade imensa dos tempos lógicos em que chegaríamos a um futuro claro. Odiamos este mundo que temos de engolir, feito de fluxos e chips, constelado como uma teia e não reto como o trem da história indo para o bem! Temos saudade da idéia de "solução". Hoje não há mais. Tínhamos pai (até pais ferozes como Médici eram preferíveis à orfandade), tínhamos mãe, éramos irmãos. Hoje só esta insustentável leveza do ser do mercado, como um corpo esquartejado que lembra a morte. A esquerda velha-guarda estava protegida até da morte. Lembro de um amigo me segredando: "A morte é uma ilusão burguesa". O homem socialista se perde no todo e não morre. É um ser social, um ser para o outro. Marx nos dava até a vida eterna! Hoje sou um pobre-diabo entre fluxos de capital, lutando para não ser excluído. A época "familial" da política acabou com Collor, que encerrou um ciclo, deixando a "mãe-pátria-amada" em coma no hospital, abandonada pelos filhos. Sobrou para FHC a tarefa árida de "desconstruir", como um psicanalista. E teve de se aliar nisto àqueles que nunca pensaram no todo, os individualistas da ex-UDN, acostumados à orfandade dos interesses frios. Casualmente, há neles a modernidade oportuna do pensamento parcial. Por outro lado, há uma grande dor no mundo "múltiplo" de hoje. Há um gosto de tragédia neste universo fraturado. Antes, o Brasil era uma mãe virgem, Nossa Senhora, e nós os filhos de Deus, que era brasileiro. A idéia de monopólio tinha a tranquilidade sólida de uma coisa só, una, de um lar de classe média, de monogamia. O monopólio garantia a virgindade da mãe-pátria ou, ao menos, uma fidelidade ao pai-Getúlio. Hoje, estamos mais adultos e teremos que construir nosso destino com a desmontagem contínua das ilusões históricas. O Brasil tem uma história de costas, evoluindo pelo que perde e não pelo que ganha. O Brasil se descobrirá por subtração, não por soma. Chegaremos a uma idéia de país, quando as desilusões chegarem a ponto zero. Então, raspados de sonhos loucos, descobriremos que este mínimo, este resto somos nós. É melhor? É. Mas não importa. Não queremos. Temos saudades do passado quentinho do sentido. Saudades do Matão... Por isso Almino Affonso não aguentou e chorou. Por isso a vaga melancolia do fim do monopólio... Por isso, quando peguei trêmulo as "camisas-de-vênus art déco", em 1948, tive a mesma dor de orfandade que outro dia bateu no peito emocionado de Lula se abraçando na Câmara ao velho Brizola. Texto Anterior: Alice ama em outro lugar Próximo Texto: Cadão Volpato dá as costas ao universo pop para ser escritor Índice |
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