São Paulo, quinta-feira, 22 de junho de 1995
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Receita de pobreza

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Leio a resumida biografia do truculento e lendário Louis B. Mayer: ``Passou a infância catando lixo nas ruas de New Brunswick, no Canadá. Aos 22 anos comprou um velho teatro em Haverhill, Massachusetts. Oito anos depois era o maior salário dos Estados Unidos".
Comparo o sucesso dele com o meu fracasso. Não catei lixo pelas ruas do Cabuçu. Aos 22 anos, catava notícias na reportagem. O lixo no Canadá deve ser fecundo, dá para juntar dinheiro e comprar um teatro. Aqui no Brasil, catadores de lixo ou de notícias mal conseguem comprar a cesta básica.
Volta e meia medito sobre as razões que me impediram de ganhar os milhões de dólares que nunca tive. Termino sempre na constatação de que não catei lixo, não varri assoalhos de bancos -início de carreira de banqueiros bem-sucedidos.
Onassis catou pontas de cigarro nas ruas de Buenos Aires. Rockfeller começou a vida vendendo perus -tudo isso ficou faltando na minha biografia e no meu inexistente sucesso.
Menino de classe média, tive bolas de futebol, bicicleta e outros sinais exteriores de abastança ``remediada", ou seja, cheia de remédios para sobreviver sem catar lixo e vender perus. Aos 22 anos, sabia latim e grego, mas não sabia tomar um bonde. Fui ganhar o piso salarial de reportagem, que era mais um piso do que um salário.
Num desses programas de perguntas e respostas, a moça quis saber se eu já estava rico. Estranhei o ``já". A produção do programa parece que me considerava rico. Respondi que continuava remediado, isto é, cheio de remédios.
Não catei lixo, não vendi perus, não varri escritórios, deixei de cumprir regras essenciais para exercer o ofício de rico.
Restava a apelação do dr. Fausto: vender a alma. Vendi-a antecipadamente. O dr. Fausto queria juventude. Eu queria uma torta de banana que vi na prateleira da casa de uma vizinha. Até hoje não entendi por que o Demônio topou o negócio com Fausto e nada quis comigo. Se vier ao mundo outra vez, em vez de vender a alma vou tentar vender perus.

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