São Paulo, sábado, 24 de junho de 1995
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O mito do planejamento estratégico

JOÃO BOSCO LODI

Em 1995 comemoramos o 30º aniversário de publicação de ``Planejamento Estratégico", a obra seminal de Igor Ansoff, marcando o início de uma nova visão da empresa. O aparecimento desse livro original, nunca mais ultrapassado pelo autor, foi seguido de diversas contribuições, como as de Henderson, BCG, Vancil, Kepner-Tregoe e de muitas publicações brasileiras de destaque. O conceito de planejamento estratégico superou a administração por objetivos, que também produziu a seu tempo muitos frutos entre nós. Antes do PE, tínhamos a multisecular contribuição de estrategistas militares como Suntzu, Miyamoto, Clausewitz, Liddell Hart, até o recente John Keegan.
Coleciono velhos planos estratégicos de décadas anteriores só para confirmar que, na maioria, seus ``insights" não corresponderam à realidade subsequente. Valeram os cenários, avaliações de oportunidades e ameaças, de forças e fraquezas. Quanto papel foi gasto. O corpo estava bem, mas faltava a alma.
1. Ruptura de paradigmas.
Com a sua difusão pelas décadas de 60 a 80, o PE tornou-se uma expressão caseira, criou um jargão próprio, originou sociedades do mesmo nome, instituiu um rito e uma metodologia de trabalho nas convenções anuais de quase todas as organizações. Como nos países avançados, empresas então líderes notabilizaram esse modo de pensar o negócio: LTB, Alpargatas, Villares, Mendes Júnior, Ultragaz. Nem sempre a dedicação ao tema resultou num sucesso para a empresa. Muito pelo contrário, vimos alguns dos mais exemplares desaparecerem do cenário. Teriam as pessoas pensado que o mero ritual do PE garantia a reflexão estratégica, a visão nova da realidade, a intuição genuína?
As estratégias mais exitosas foram visões, intuições, oráculos, ``insights", revelações, alguma coisa entre a coleção de fragmentos de novas evidências e o estado crepuscular do inconsciente. O estrategista/empreendedor é uma espécie de xamã, que cria por processos inconscientes, confusos e informais a partir de zonas cinzas, incertezas, raciocínios em círculo, informações fragmentárias de clientes e concorrentes, frequentemente usando pedaços de conversa, boatos, a escória do dia-a-dia, soldando tudo isso numa colagem como faz um mecânico de fundo de quintal.
Esse é o miolo mais rico do PE. O seu contorno é formado por cenários do ambiente, documentação sobre o estado da arte em seu ramo, avaliações de pontos fortes e fracos, fatores competitivos, análise do ``driving force" e muita informação sobre o cliente e a concorrência. A idéia genuína passa às vezes disfarçada ou irreconhecida sob essa ramagem de informações.
2. Os planejadores não fazem estratégia.
O que faz um planejador é ajudar no arranjo das informações, trabalhando em volta do processo e não dentro dele, pois ele não é do ramo e não detém a chave do segredo. Um planejador estratégico simplesmente não faz estratégia, tanto quanto um chefe de protocolo não faz diplomacia. Mas estabelece o formato, o cronograma, fornece as premissas macroeconômicas e setoriais, as análises quantitativas, as séries históricas, os gráficos de tendência, as matrizes competitivas e os quadros de referência, formalizando o processo. Ele preserva e rearranja as categorias, acomoda a sequência do raciocínio dentro de uma caixa, como um meticuloso embalador.
O estilo calculado do planejador é o próprio oposto de quem cria estratégia. Na pior das hipóteses, um planejador estratégico reduz o poder criativo, a intuição genuína e paralisa o comprometimento dos empreendedores. Um planejador não prevê nada, mas arranja as tabelas. Deixar o processo estratégico na mão dos planejadores é um total desastre, porque eles não geram estratégia, mas apenas redigem o que os verdadeiros estrategistas pensam. Em algum momento, o empresário trouxe para junto de si um diretor, assessor ou consultor de planejamento estratégico já experiente em outras empresas, mas nunca pensou em dar a ele a chave da solução.
3. As ilusões do planejador.
Olhando para seus gráficos de tendência e cenários de ambiente, o planejador supõe que o mundo é previsível porque está parado. Ele veio de outras organizações, geralmente mais lentas e complexas, onde participou do mesmo processo, mas não teve tempo de colher os frutos, e nunca entendeu a fundo o negócio por onde passou, porque nunca foi um operacional.
O planejador tem por formação um viés de distanciamento crítico sobre os fatos. Acreditando que o processo gera a conclusão, ele não se envolve nos detalhes, nas meias verdades e no lixo do cotidiano, onde são colhidas as intuições estratégicas.
O planejador não é do ramo, não põe a mão na massa, não vai ouvir o homem do campo, não tem responsabilidade pela implementação. Olhando para os grandes números de seu gráfico, ele é um ingênuo, acreditando no determinismo das tendências e não nas descontinuidades e no fator surpresa. Para ele, instalado o processo formal, a conclusão é o desfecho necessário e inevitável. Também o comprometimento dos executores é tomado como natural consequência do exercício. Ele é apenas um sacerdote que oficia um rito.
4. Ascensão e queda dos planejadores.
Empresários têm confiado a planejadores o seu planejamento estratégico porque perderam a esperança de que seus ``homens de linha" tirem a cabeça de fora do tático-operacional. Mas quem conhece o negócio e está com a mão na massa é o executivo, não o planejador. É preciso resgatar o operacional para a tarefa estratégica, melhorando a sua visão macro, porque não há outra alternativa.
O empreendedor pragmático não tem tempo nem paciência para pesquisa meticulosa. Não está interessado em ser completo, porque sabe que análise demais pode ser prejudicial. No tempo em que uma oportunidade está sendo pesquisada, pode não existir mais. A paralisia da análise atrasa a entrada.
Empresas grandes criaram o ritual das coisas completas e formaram toda uma geração de profissionais voltados à formalidade dos processos. Muitos deles, os verdadeiros empreendedores, aprenderam a cumprir os rituais só para aplacar os críticos, mas sabiam que a reflexão estratégica, a coisa real estava em outro lugar. Escrever um plano é apenas um exercício para propiciar a hierarquia na sua ansiedade pelo conformismo.
Muitas empresas cultuam análises requintadas e desenvolvem uma incapacidade para captar oportunidades. São os dinossauros de hoje. O empreendedor procura fazer a coisa certa, mas, para passar pelos canais do conformismo, usa o jargão do politicamente correto, faz o lobby de seu projeto e, por meio dessa trapaça, com risco próprio, opera na franja da delinquência do sistema.

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