São Paulo, quarta-feira, 28 de junho de 1995
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Mercosul: a minha versão

JOSÉ TAVARES DE ARAÚJO JR.

Ao contrário do que foi divulgado pela imprensa no momento de minha saída da Câmara de Comércio Exterior, não sou inimigo do Mercosul, mas um fervoroso defensor desse projeto. Aqueles que acompanham o debate sobre abertura e integração na América Latina sabem que dediquei grande parte de minha carreira profissional à defesa da tese de que é fundamental para o Brasil promover a criação de um espaço econômico unificado com os países vizinhos.
Entretanto, minhas críticas à Tarifa Externa Comum e aos prazos exíguos estabelecidos pelo Tratado de Assunção são antigas e bem conhecidas, no Brasil e na Argentina. Não foram elas que tornaram minha presença insustentável no governo.
Em 1991, após a assinatura do Tratado de Assunção, escrevi um ensaio que discutia dois obstáculos centrais aos processos de integração: a inconsistência das políticas domésticas e a instabilidade cambial. Em relação ao primeiro tópico, procurei mostrar que a consistência das políticas econômicas não resulta de métodos esotéricos, não disponíveis a países pobres, mas de dois atributos prosaicos da conduta governamental: transparência de procedimentos e estabilidade de critérios decisórios.
Neste ponto reside o papel da soberania compartida. Quando um governo resolve aderir a um projeto de integração e inicia um esforço de harmonizar suas políticas com os demais parceiros no projeto, ele se obriga a um compromisso que frequentemente não cumpre dentro de seu país: a divulgação minuciosa do conteúdo das providências que toma rotineiramente.
Daí origina-se um processo curioso. A principal dificuldade que o governo passa a enfrentar não é a de abrir mão de sua soberania em prol das políticas usadas pelos parceiros, mas a de tornar compatíveis suas próprias políticas, a fim de que seja possível harmonizá-las com as dos parceiros.
Em relação ao segundo tópico, argumentei que a taxa de câmbio cumpre simultaneamente pelo menos três funções na economia: (a) define o poder de compra da moeda doméstica no mercado internacional e, consequentemente, o nível médio de afluência da população nacional em relação ao resto do mundo; (b) afeta a competitividade internacional da indústria local; e (c) influi no comportamento dos preços e na atratividade dos ativos financeiros domésticos.
Entretanto, nenhum governo tem o poder de eleger permanentemente uma destas funções em detrimento das demais. Uma taxa de câmbio apreciada pode elevar artificialmente o padrão de vida de certos grupos sociais, ao mesmo tempo em que desestimula as exportações e, eventualmente, ajuda a combater a inflação doméstica através do barateamento das importações. Este tipo de estratégia termina, em geral, com uma crise no balanço de pagamentos do país. Uma taxa de câmbio depreciada pode gerar superávits comerciais, mas por meio da transferência indevida de recursos ao resto do mundo e do empobrecimento desnecessário da população nacional.
Assim, a busca do equilíbrio estável é o único objetivo factível a longo prazo. Ocorre que, também neste caso, nenhum governo tem o poder unilateral de assegurar a realização desta meta num mundo de ampla liberdade no movimento de capitais. Em outras palavras, a estabilidade dos preços domésticos é uma condição necessária, mas não suficiente para garantir a estabilidade da taxa de câmbio. É por esse motivo que os esforços de integração econômica tornaram-se cruciais no passado recente.
Com base nos conceitos acima referidos, e após confrontar as evidências empíricas sobre o desempenho da Europa e da América Latina nos anos 80, minha avaliação sobre os prazos do Tratado de Assunção foi a de que, à primeira vista, os governos do Cone Sul estariam ávidos por auferir os benefícios da soberania compartida.
Entretanto, um exame superficial do contexto em que as decisões foram tomadas não confirmava a impressão inicial. Dados os distintos formatos dos aparatos governamentais desses países e a intensidade dos desequilíbrios macroeconômicos no Brasil e na Argentina na época, seria impraticável cumprir, em quatro anos, a tarefa de harmonizar completamente as políticas econômicas, conforme pretendido. Na Europa, sem crises de inflação e dívida externa, esse processo levou mais de três décadas. A fim de evitar que o Mercosul se tornasse mais um exemplo da longa lista de fracassos latino-americanos, sugeri a redução transitória de seu escopo para um Tratado de Livre Comércio e o estabelecimento de prazos mais sensatos para a formação do mercado comum.
O professor Mário Henrique Simonsen costuma dizer que a economia é a arte de explicar porque nossas previsões passadas estavam erradas. No meu caso, as observações feitas em 1991 continuam válidas para explicar as dificuldades atuais do Mercosul, cujas fontes são evidentes: a fragilidade da situação cambial na Argentina e no Brasil e o retrocesso da política comercial brasileira.

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