São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
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O desejo da norma

MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA

Sintoma Social Dominante e Moralização Infantil - Um Estudo sobre a Educação Moral em Émile Durkheim
Heloisa Rodrigues Fernandes Escuta/Edusp, 213 págs. R$ 12,75

Heloisa Fernandes assim apresenta a sua tese acerca da sociologia educacional durkheimiana: ``Quando selecionei a obra de Émile Durkheim como exemplar do projeto de moralização infantil laica, pretendia analisar o dispositivo pedagógico que ali é construído, apresentado e justificado de modo a sustentar a tese de que esse dispositivo não está comprometido com o ideal de autonomia de cidadãos livres, responsáveis e criadores, mas que, ao contrário, é substituto do dispositivo da moralização cristã, com efeitos similares: identificação com a norma; submissão; demanda de crença no Outro, único a decidir, providencial e onipotentemente, sobre os destinos da vida individual e coletiva".
Situando a análise no encontro dos discursos sociológico e psicanalítico, a autora elabora cuidadosa reconstrução do sentido subjacente aos textos de Durkheim sobre a educação e do seu papel na produção de sujeitos disciplinados, moldados no processo de introjeção do Outro no psiquismo infantil. De saída, a socióloga identifica não apenas o lugar de onde constrói a sua interpretação, mas, principalmente, a perspectiva crítica que percorre a elaboração do seu livro ``Sintoma Social Dominante e Moralização Infantil".
Visto desse ângulo, o livro de Heloisa Fernandes encerra uma visão original do sociólogo francês, acentuando as suas concepções eminentemente intervencionistas, o caráter ``teórico-prático" da sua produção, cujo discurso fundamental assenta-se no papel dos educadores na moralização infantil. Por que a educação passa a ocupar um espaço tão crucial na reflexão do grande sociólogo francês? E aqui entrecruzam-se circunstâncias as mais diferentes, responsáveis pela centralidade que o tema assume na segunda fase da sua carreira de professor de sociologia na Universidade Francesa. A reconstrução dessas circunstâncias, empreendida pela autora, passa pela investidura de Durkheim na cátedra de ciências da educação da Sorbonne, em 1902, pelo prestígio advindo de sua posição como o mais importante sociólogo francês, cuja obra era publicamente reconhecida, e da sua condição de fundador da revista ``L'Année Sociologique".
A influência de Durkheim havia transbordado os limites do ambiente universitário. Considerado um dos principais arautos da educação pública e laica, o sociólogo firmava os princípios da moralidade que pretendia instaurar a norma: ``Educar os educadores, eis o filão que Durkheim procurará garantir à sociologia, substituto racional da religião". Na ambiência da Terceira República, que aprovou a separação da Igreja do Estado, em 1905, as reivindicações em torno da escola primária, pública, laica, gratuita e obrigatória, transformaram a sociologia em domínio inconteste, entendido na acepção clara de durkheimismo, espécie de pregação redentora. ``Moral laica e sociologia durkheimiana -com perdão da redundância- iam-se tornando a ideologia oficial da Terceira República, a chamada República dos Professores."
O desenvolvimento dos princípios discursivos de Durkheim, principalmente em ``L'Éducation Morale", permite à autora compreender como a escola primária se transformou em instituição fundamental da modernidade, além de levá-la a ``questionar o dispositivo pedagógico disciplinar e de procurar resgatar do passado tantos outros comprometidos com a significação da autonomia". E, nesse andamento, busca-se destacar os componentes da teia discursiva, capazes de conferir-lhe inteligibilidade, à moda do analista, que medeia a revelação dos significados subjacentes à linguagem. O seu exercício interpretativo é bastante enriquecedor, apesar da inexistência do espaço transferencial.
O fundamento do discurso de Durkheim lastreia-se no diagnóstico da crise da moralidade pública na França e na Europa, a explicar tendências controvertidas da consciência coletiva. Em face do panorama, exige-se a constituição de um sistema pedagógico regenerador e disciplinado, instrumento de formação de um ideal social superior aos interesses e impulsos particularistas. A tarefa dos educadores alcança o seu sentido pleno quando é capaz de ``oferecer ideais como objeto de amor". Émile Durkheim confere caráter profético à profissão de sociólogo e educador, realizando percurso assemelhado ao de seu pai, identificando-se com as imposições da carreira religiosa dos seus ancestrais.
Segundo a interpretação da autora, a universidade constituía-se no ``locus" privilegiado de irradiação dos princípios da moralização infantil e as escolas normais e escolas primárias gratuitas e obrigatórias de Jules Ferry são elos na cadeia de transmissão. Investida do sentimento missionário, a sociologia durkheimiana passa a ocupar o lugar de ``substituta da religião" no compromisso de promover a moralização infantil. No andamento da educação, moralizar as crianças significa internalizar o Outro na subjetividade, tornando a moral um princípio construído para a sociedade e através dela, condição, em suma, da sua própria existência. Por esse motivo, Heloisa Fernandes rejeita identificar ``educação à socialização no seu mais amplo sentido", por considerar um procedimento redutor às idéias do sociólogo francês. ``Na concepção durkheimiana, educação não se associa à socialização, mas à moralização, e esta, por sua vez, ao desejo da norma." Por isso, o educador exerce função semelhante à do sacerdote, não lhe cabendo avaliar os valores morais, mas consertar as paixões humanas, solventes da sociedade. Moralizar as paixões humanas, eis o imperativo da educação nos moldes durkheimianos ou, em outros termos, introjetar o Outro (sociedade), enquanto dimensão psíquica, no Outro (Criança), enquanto ser em processo de colonização. Nessas passagens, explicita-se o caminho psicanalítico da reflexão, a inspiração na teoria lacaniana, na busca de compreensão da obra de Émile Durkheim sobre a educação moral.
Dos três elementos da moralidade -espírito de disciplina, sacrifício e autonomia da vontade-, assiste-se apenas à realização dos dois primeiros, visto que a ação colonizadora, do social para o psíquico, produz permanentemente a censura do Outro e a eliminação do ser desejante. Na intenção de pôr em prática suas concepções, emerge um Durkheim identificado com as idéias eugenistas e seguidor das experiências de hipnose e dos seus efeitos de sugestão na constituição de seres moralizados, isto é, normalizados. Tributário da obra ``Éducation et Hérédité", de Jean-Marie Guyau, Durkheim pôde formular a concepção de que os instintos são impulsos maleáveis e educáveis, ou não há como se afirmar a presença de traços predestinadamente hereditários.
O apelo à psicologia de sua época, por intermédio de Guyau, leva-o a rejeitar as visões mais libertárias de um Pestalozzi. Por essa via, o dispositivo disciplinar -núcleo da moralização laica- opera construindo punição, vergonha e culpa, onde o mestre é o juiz, as faltas exigem o fiscal e as crianças, sintoma do adulto infantilizado, são sempre supostos devedores. Em síntese, o ``dispositivo pedagógico, do qual o discurso durkheimiano parece ser um sintoma bem compensado, reduz-se no seu funcionamento a trocar desejo por culpa e culpa por demanda de amor", isto é, reconhecimento do Outro. A construção do sujeito social possui, como contraface, a destruição do sujeito desejante. Para a autora, na trama do discurso da moralidade durkheimiano, subjaz o disciplinamento da sexualidade a revelar o lado repressor, a personalidade rígida e puritana desse mestre da sociologia.
O Durkheim domador das paixões não descarta o pensador identificado com os princípios da reforma e simpático aos ideais socialistas. No decorrer da sua vida, alimentou a paixão obsessiva de tentar a difícil conciliação entre ordem social e autonomia individual. Em nome desse sentido totalizador, enveredou por caminhos na busca de resolução da crise da moralidade do seu tempo. A ultrapassagem das suas concepções tende a significar a transposição das promessas irrealizadas da modernidade. Nessa trajetória, insere-se o livro instigante de Heloisa Fernandes, que se constitui em obra bem realizada, densa e reveladora da reflexão sociológica nos dias que correm. Nos domínios da sociologia emergem novos sintomas.

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