São Paulo, quarta-feira, 5 de julho de 1995
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Discriminação é confessável no elevador

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

N unca entendi porque existe, no Brasil, a diferenciação entre elevador de serviço e elevador social. Às vezes um fica ao lado do outro, sem nenhuma barreira física; e, nesses casos, naturalmente pego o que chegar primeiro. Posso fazer isso, mas a empregada não. Só pode usar o de serviço.
É uma discriminação grotesca e sem sentido; a reportagem de Aureliano Biancarelli e Mauricio Stycer, publicada domingo passado na Folha, denomina o fenômeno com exatidão: é o "apartheid" do elevador.
Está em debate na Câmara Municipal um projeto de lei da vereadora Aldaíza Sposati, do PT (esse infatigável PT), prevendo multas para os condomínios que obrigarem os empregados, entregadores, proletários, populares e pobres em geral a usar o elevador de serviço.
Nossa classe média, que gosta tanto das coisas do Primeiro Mundo, deveria aderir imediatamente à proposta. Para um americano qualquer, não há nada mais estranho do que essa diferenciação.
O antropólogo James Holston, por exemplo, em seu livro sobre Brasília ("A Cidade Modernista", da Companhia das Letras), ironiza bastante esse costume nativo. Fui, aliás, o tradutor dessa instigante monografia, o que não diminui minha vergonha como cidadão.
O espantoso, de qualquer modo, é que há muita gente defendendo o "apartheid" do elevador. Uma jovem "promoter", Daniela Diniz, declara à reportagem: "não é uma questão de discriminação, mas de respeito. Acho que cada um deve ter o seu espaço."
Também acho que cada um deve ter o seu espaço. mas quem sabe Daniela Diniz devesse radicalizar um pouquinho mais seu pensamento. É incômodo ficar junto com a empregada dentro do elevador? Tudo bem. Mas deve ser muito mais incômodo ver a empregada circulando pela sala, entrando em nosso banheiro, lavando nossa particularíssima privada, mexendo nos alimentos que vamos comer, inspecionando nossa geladeira!
Cada um deve ter o seu espaço, concordo. Se a empregada tem, então, um elevador próprio, seria necessário que ela tivesse sala-de-estar própria, cozinha própria, lavanderia própria, suíte, sala de televisão. Um apartamento inteiro para ela; por que não? Estaríamos assim inteiramente livres de seu convívio.
Desconfio que quem defende a separação dos elevadores não chega a tanto. Qual o problema específico, então, da empregada no elevador social? O que há no elevador que não há na cozinha?
Secretamente, o pensamento discriminatório alude a uma coisa: o cheiro. Peço desculpas ao leitor por abordar um tema tão naturalístico. Mas é claro que a diferença entre o elevador e o apartamento inteiro está no fato de que no elevador a proximidade física é maior e o ambiente menos arejado.
Só que o cheiro da empregada é mais um preconceito de classe do que uma contingência real. O proprietário do apartamento vizinho, ao entrar no elevador social, pode ter-se descuidado desse aspecto também e não seria o caso de mandá-lo ao elevador de serviço ou ao chuveiro; uma copeira espevitada pode perfumar-se bastante para entrar no elevador e uma perua preconceituosa é capaz de exalar essências florais e almiscaradas que dariam náuseas ao leitão mais insensível e mesmo, não é raro, ao próprio marido.
O argumento mais decisivo, nessa questão do cheiro, é outro, todavia. O patrão não hesita em pegar o elevador de serviço, se este chegar primeiro. Nos prédios em que é possível optar entre um e outro, ou seja, em que a discriminação não se dá por meio de barreira espacial, mas apenas por uma placa indicando a classe à esquerda ou à direita, não há quem não decida tomar o elevador que parou na frente, por mais que seja malfrequentado.
Recorro então às opiniões da atriz e modelo Carolina Ferraz. Justifica a separação dos elevadores de forma bastante solene: "é preciso haver hierarquia".
Ela fala em "hierarquia". O termo seria correto se o elevador de serviço fosse pior do que o elevador social. Para corresponder plenamente às idéias de Ferraz, o elevador de serviço deveria ser, por exemplo, mais demorado, mais apertado, mais feio, mais escuro, mais perigoso -mais "de pobre", enfim- do que o elevador social.
Aí sim teríamos a "hierarquia" funcionando plenamente. Mas não! O escândalo é que o elevador do rico é igualzinho ao do pobre! Onde está a hierarquia pretendida por Carolina Ferraz? Ao contrário, estamos diante de uma engenharia de elevadores absolutamente subversiva e socialista. O quarto da empregada é pior do que o quarto do patrão, a TV é pior, a comida é pior, tudo é pior. Mas o elevador, estranhamente, é igual!
Por isso mesmo, aliás, é que tem de ser "diferente". Chegamos agora às raízes do "apartheid" do elevador. Não é questão de hierarquia, de cheiro, de qualidade. O problema do elevador é que ele é absolutamente democrático. Um elevador é igual ao outro, o de serviço funciona como o social.
Mas é quando há igualdade que surge a discriminação pura. Pura, porque dispensa até as diferenciações reais: um banco de praça para negros é igual a um banco de praça para brancos, no racismo americano dos ano 50, ou na África do Sul até recentemente. Só que um era para brancos, outro para negros. Afirmava-se mais a "diferença" das raças equalizando todo o resto.
A discriminação dos elevadores tem uma importância especial no Brasil. Como existe toda uma ideologia de igualdade, de ausência de preconceitos, de liberalidade e de democracia, as normas internas do condomínio permitem uma discriminação sem culpa. Não há a figura odiosa do "discriminado"r; há uma tradição anônima, uma regra estabelecida e sem sujeito, dizendo que o empregado não entra aqui.
Surge, assim, a alegria de poder discriminar sem culpa; é uma questão de "tradição". Sempre foi assim. A classe média brasileira se encanta pela discriminação no elevador porque esta é a única que tradicionalmente lhe é permitida.
Pior que isso. Nem se dá ao trabalho de discriminar. Discriminação é trabalho "sujo", a classe média sabe disso. Daí que encarregue os próprios porteiros e zeladores dessa tarefa.
É o zelador mulato quem manda a negra entrar pela porta de serviço. O trabalho de ser racista e classista é entregue a porteiros, seguranças, policiais, delegados bregas. Ficamos brancos e limpos até nisso.
A discriminação que entre pela porta dos fundos. Não tenho nada a ver.
A canalhice é total, porque se finge de desentendida na própria canalhice. Trata-se do prazer, sempre negado, de fazer um apartheid a sério. O elevador é o apartheid a sério, numa sociedade que se julga, não sem razão, tolerante e aberta. Faz-se o apartheid a sério numa questão minúscula. Como se, nessa questão minúscula, se quisesse dizer tudo o que num âmbito mais geral está proibido de ser dito.
A discriminação se torna confessável no tema do elevador; como se fosse uma válvula de escape de tudo o que de racismo, de preconceito de classe, de privilégio e de violência já se instituiu neste país.

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