São Paulo, quarta-feira, 5 de julho de 1995
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Plano Bresser: atração fatal

NEWTON LIMA NETO

O Ministério da Administração e Reforma do Estado (Mare) concluiu, à revelia da comunidade acadêmica e ao que tudo indica do próprio MEC, seu projeto de transformação das universidades federais públicas em organizações não-estatais de direito privado.
Perversamente autodenominado de modelo de ``publicização", o projeto caracteriza-se, de fato, como a manobra mais radical até hoje proposta pelos defensores do Estado-mínimo no campo da educação superior. A partir dele, a União se desvencilharia, de forma ainda mais efetiva, das suas obrigações de financiamento das universidades federais, transferindo o ônus da necessária complementação orçamentária às próprias instituições.
Estas, objetivando manter, expandir e aperfeiçoar seus programas acadêmicas, estariam livres das restrições impostas pela legislação em vigor -a começar da Constituição- para ``captarem recursos no mercado", enquanto o Estado, gradativamente, economizaria nessa área. Mas qual seria a diferença entre esse modelo de financiamento e o vigente nas universidades públicas que já vêm obtendo recursos externos em função das insuficientes verbas repassadas pelo Tesouro?
No modelo atual, além dos recursos distribuídos pelo MEC, as instituições universitárias têm mais uma fonte de recursos, excluídos os provenientes do SUS -quando há hospital- e dos órgãos de fomento à pesquisa e pós-graduação, a saber: convênios públicos e privados, cursos de extensão universitária e remuneração financeira sobre o principal obtido.
A participação de cada uma dessas parcelas no orçamento global varia em cada universidade, mas a soma dos recursos próprios certamente não ultrapassa 10% do global, percentual semelhante ao observado no sistema público de ensino superior canadense, dentre outros exemplos.
Pelo projeto Bresser, a parcela de autofinanciamento seria ampliada, partindo-se do princípio de que as universidades federais necessitam de mais verbas e o governo não pretende disponibilizá-las. Para isso, duas novas fontes de composição orçamentária estariam agregadas: cobrança de mensalidades e empréstimos bancários.
A primeira, como já exaustivamente demonstrado, é nociva às sociedades com perfis de distribuição de renda como a brasileira, por impor maior elitização do ensino superior e indisfarçada bitributação. A segunda provocaria tal endividamento, sobretudo em países com juros escorchantes como o nosso, que colocaria o sistema em situação de permanente risco.
A mutação estrutural proposta, abençoada pelos cânones neoliberais implantados na Inglaterra no início da década passada, e logo seguida por alguns países latino-americanos, do qual o Chile é exemplo, só trouxe problemas.
Na Inglaterra, porque, reconhece-se hoje, a diminuição dos investimentos públicos na educação superior impôs atrasos ao desenvolvimento científico e tecnológico comparado, além de massacrar áreas ``pouco rentáveis" do conhecimento, como as humanidades. No Chile, as ex-universidades públicas transformaram-se em empresas de ensino, tendo que, regularmente, negociar suas dívidas junto aos chamados agentes financeiros, com aval do Estado.
Esta tendência de o Estado desobrigar-se de sua responsabilidade com as universidades públicas é criticada pela Unesco em documento recente (Caracas, fevereiro/95). Segundo ela, ``se a educação superior tem a dar uma contribuição significativa ao progresso da sociedade, o Estado e a sociedade em geral deveriam percebê-la não como um custo para o orçamento público, mas sim um investimento nacional a longo prazo que aponte para um maior desenvolvimento cultural, uma mais elevada competitividade econômica e uma coesão social mais forte".
O novo modelo, se enviado ao Congresso, definirá a concepção governamental sobre a educação superior: ela é gasto e não investimento, e como tal deve ser gerenciada pela lógica do mercado. Não interessa se isso trará consequências ao desenvolvimento autóctone do país, ou se privatizará definitivamente a produção do conhecimento.
O que importa é a contabilidade pública. Como não se consegue ampliar a receita justa de impostos e aniquilar a sonegação, uma vez que as elites econômicas poderosas não o permitem, sacrifiquem-se as despesas, mesmo que elas representem -no caso das universidades federais- menos de 1% de toda a riqueza nacional. É uma vergonha o país suprimir verbas sociais para educação e saúde, enquanto se convive com uma situação em que, para cada real arrecadado, outro é sonegado.
A questão do financiamento é o cerne da preocupação do Mare. Mas, para tornar o projeto palatável, o ministério acena aos reitores e à comunidade universitária com uma série de vantagens gerenciais sedutoras, decorrentes da opção pelo modelo privado.
Tais vantagens, traduzidas em eliminação das dificuldades impostas pelo cipoal de normas e regulamentos do serviço público e implantação do mecanismo de contrato de gestão, podem perfeitamente ser obtidas com a manutenção da atual natureza jurídica das universidades federais, e o compromisso constitucional de seu macrofinanciamento pelo Estado -conforme demonstra a proposta sobre autonomia universitária elaborada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), enviada há seis meses ao governo federal e até aqui desconsiderada.
Os argumentos apresentados pelo ministro Bresser quanto à não-compulsoriedade do modelo e à garantia de que o volume de recursos ao sistema manter-se-ia inalterado não resolveram o problema. É evidente que as instituições que optarem pelo novo modelo poderão ser inicialmente favorecidas, mas, com o tempo, todas serão prejudicadas com a quebra da unidade do sistema federal, indispensável à sua própria existência.
Quanto ao volume de recursos, a decisão recente do próprio ministro Bresser em cortar arbitrária e burocraticamente metade das vagas de reposição do pessoal docente, contrariando projeto do ministro da Educação, abre perspectivas ainda mais intranquilizadoras quanto ao financiamento futuro das desamparadas instituições federais de ensino superior, se elas, advertida ou inadvertidamente, submeterem-se à atração fatal do modelo proposto.

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