São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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Câmbio e inflação

EDUARDO GIANNETTI

O equívoco da sobrevalorização do real encurtou a vida útil da âncora
A ciência econômica lida com dilemas. Noções como "trade-off" e custo de oportunidade fazem parte da caixa básica de ferramentas que o economista profissional põe a serviço da análise de políticas públicas. São elas que, em muitos casos, fazem a diferença entre o raciocínio espontâneo e intuitivo dos homens práticos (políticos, empresários, sindicalistas, jornalistas e benfeitores) e uma abordagem mais sistemática -nem sempre agradável de ouvir e entender- das interdependências e relações causais entre fenômenos aparentemente desconexos.
A questão da condução da política cambial no segundo ano do Plano Real -o nervo sensível do esforço de estabilização em curso- mostra de forma clara os terríveis riscos e armadilhas que só uma análise mais objetiva dos dilemas colocados poderá evitar. Em economia, como na vida, nada é tudo. Mas não há exagero em dizer que a consolidação da moeda estável no Brasil -a promessa que elegeu FHC- passa pela desmontagem cuidadosa, ao menor custo exequível, da bomba cambial armada no primeiro ano do Real.
A adoção de uma âncora cambial é um instrumento perfeitamente válido, embora limitado, de estabilização monetária. O valor de uma moeda nacional, qualquer que ela seja, tem duas dimensões básicas. A primeira -o valor interno- consiste no seu poder de compra de bens e serviços no próprio país. A elevação (queda) do índice geral de preços reflete e permite quantificar a perda (ganho) de valor interno da moeda.
A outra dimensão do valor de qualquer moeda nacional é o seu valor externo, isto é, a proporção pela qual ela será trocada pelas moedas nacionais dos demais países. O valor absoluto da troca é puramente convencional. Se o minuto passar a se chamar hora ele continuará durando 60 segundos. Embora US$ 1 valha hoje 85 ienes ou 1,4 marcos, isso de forma alguma significa que a moeda norte-americana seja mais forte que a japonesa ou a alemã. O que importa são as alterações na taxa de câmbio. São elas que refletem e permitem mensurar as variações no valor externo da moeda.
Ao adotar a âncora cambial, por ocasião da reforma monetária que há um ano criou o real, a equipe econômica de FHC buscou reforçar a estabilidade do valor interno da nova moeda mediante o compromisso de garantir, usando as reservas cambiais se necessário, a estabilidade do seu valor externo. A idéia era que a fixação de um teto nominal para a desvalorização máxima do real em relação ao dólar operasse como um fator restritivo dos preços domésticos, principalmente nos mercados contestáveis pelos importados, e como ponto de convergência das expectativas em relação à inflação futura do real.
Essa estratégia -precedida, é claro, pela desindexação via URV e pelo equilíbrio orçamentário via FSE- trouxe ótimos resultados na redução da inflação. O problema é que a âncora cambial não veio só. Na prática, ela veio acompanhada de uma forte, rápida e prematura apreciação do real nos meses iniciais do plano, de uma antecipação do cronograma de redução das tarifas de importação e de um vigoroso aquecimento da demanda interna, provocado pelo aumento de renda real dos grupos com maior propensão ao consumo, pela volta do crédito e pelo aumento do gasto público no governo Itamar.
O resultado conjunto de tudo isso foi colocar nossa economia numa trajetória de desequilíbrio externo insustentável. A crise mexicana e a consequente mudança no ambiente externo deram contornos mais nítidos e anteciparam no tempo os limites da engenharia econômica do Real. Para manter o déficit em transações correntes sob controle, sem depender do ingresso de capitais externos voláteis, o governo adotou uma política de bandas cambiais flexíveis e introduziu medidas tópicas de controle das importações.
Nada indica, entretanto, que as medidas tomadas até aqui tenham conseguido reverter a trajetória fortemente deficitária da nossa balança comercial. A correção da banda feita no final de junho nega a promessa tantas vezes repetidas de manter o câmbio por "muito, muito tempo e é apenas o suficiente para compensar a apreciação natural do real provocada pela diferença entre a inflação mensal brasileira e norte-americana. Tem razão meu colega Álvaro Zini Jr. quando alerta as autoridades sobre o desequilíbrio externo que vai se abrindo e cobra delas uma projeção definida de balanço de pagamentos em 95.
O dilema crucial da política cambial é claro. O seu formato lógico é do tipo consagrado em português pela fórmula: ``Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come". Trata-se de um ``trade-off" clássico, mas que no caso brasileiro adquire, por diversos fatores, uma aguda virulência.
Se a opção for desvalorizar o câmbio para fazer o ajuste externo, a engenharia econômica do real fica seriamente enfraquecida e a inflação pega. Uma desvalorização em economia aquecida e com forte apego à prática generalizada da indexação costuma ter forte impacto inflacionário, embora variando quanto ao lapso de tempo separando causa e efeito. O mais grave, entretanto, é que a engenharia do Real fica esgotada num momento em que os fundamentos de uma estabilidade genuína -ajuste fiscal e abertura comercial- parecem cada vez mais distantes de se tornarem realidade, pelo menos em tempo hábil.
Mas se a opção, ao contrário, for não mexer no câmbio e deixar a sobrevalorização trabalhar, o país incorre em pesados déficits externos e a crise cambial come. Como diz um ex-ministro que viveu o problema: "Se a inflação maltrata, o câmbio mata". A experiência mostra que reservas confortáveis "ex ante" podem revelar-se frágeis "ex post". Não é só o capital externo volátil que foge; são os próprios residentes com liquidez que deflagram a corrida contra a moeda nacional. Aí temos: ou a profecia se cumpre e a desvalorização vem na marra (caímos, em pior situação, na primeira opção); ou uma deflação brutal opera o ajuste externo.
O custo de qualquer das opções é alto e não há como escapar delas. O equívoco da sobrevalorização encurtou a vida útil da âncora cambial e deu margem a retrocessos -juros altos e barreiras comerciais- que agridem os fundamentos e a lógica do Real. É natural que, diante da gravidade do dilema cambial, a equipe econômica de FHC vacile, dissimule e procure ganhar tempo.
O desafio, contudo, é claro e virá com força no segundo semestre: como fazer o ajuste externo e desarmar a bomba cambial com o mínimo de custo em termos de aceleração inflacionária? Há razões para crer que boa parte das ações da equipe econômica nos últimos meses teve por objetivo precisamente abrir espaço de manobra para que os efeitos de uma desvalorização cambial mais forte não venham a comprometer o esforço de estabilização.

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