São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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O libertinismo dizia respeito tanto à pornografia quanto à filosofia

ROBERT DARNTON

Especial para "The New York Review"
Em suma, a pornografia tem uma história. Ela surgiu num corpo de literatura de contornos variáveis, mas de certa coerência. As obras no "Enfer" remetem constantemente às mesmas fontes, especialmente Aretino e o antigo culto fálico de Priapo; citam umas às outras, por vezes ao descrever "bibliotecas galantes" usadas como acessórios sexuais; exploram os mesmos artifícios, sobretudo o voyeurismo (o leitor é obrigado a inclinar-se sobre alguém que observa, por uma fechadura, um casal copulando em frente a um espelho ou sob quadros nas paredes representando casais em cópula); usam as mesmas estratégias narrativas: autobiografias de cortesãs em primeira pessoa, diálogos entre veteranos sexuais e iniciantes ingênuos, pseudomanuais de sexo e passeios por conventos e bordéis (sempre apresentados como duas versões da mesma coisa, hábito conservado na gíria "abbaye", "abadia", significando "bordel").
Em muitos casos, até mesmo as personagens têm o mesmo nome -Nana, Agnès e Suzon estavam entre os preferidos- e anunciam suas mercadorias por meio dos mesmos endereços falsos: "à Rome, de l'imprimerie du Saint Père" (em Roma, na imprensa do papa), "à Gratte-mon-con, chez Henri Branle-Motte" (em Coça-minha-boceta, na casa de Henri Punheteiro), "à Tribaldis, de l'imprimerie de Priape" (em Tribaldis, na imprensa de Priapo), "à Cythère, au Temple de la Volupté (em Citera, no Templo da Volúpia), "à Lèche-con, et se trouve dans les coulisses de tous les théâtres" (em Lambe-boceta, e encontra-se nos bastidores de todos os teatros).
Mas, apesar dessas convenções, que reservavam ao leitor o papel de voyeur e orientavam suas expectativas para uma experiência erótica, a pornografia do começo da era moderna não parecia formar, aos olhos dos contemporâneos, um gênero literário distinto e bem definido. Em vez disso, ela pertencia a uma categoria geral, conhecida como "filosófica".
Editores e livreiros setecentistas usavam o termo "livros filosóficos" para designar sua mercadoria ilegal, fosse ela irreligiosa, sediciosa ou obscena. Não se importavam com distinções mais refinadas, já que a maioria dos livros proibidos eram ofensivos por várias vias. No jargão de seu comércio, "libre" significava às vezes "lascivo", mas evocava também o libertinismo do século 17 -isto é, o livre-pensamento.
Por volta de 1750, o libertinismo dizia respeito tanto ao corpo quanto ao espírito, à pornografia como à filosofia. Os leitores sabiam reconhecer um livro de sexo quando viam um, mas esperavam que o sexo servisse como veículo para ataques à Igreja, à Coroa e a toda espécie de abuso social.
Tomemos "Thérèse Philosophe", uma das duas ou três obras pornográficas mais importantes do século 18. O romance começa com uma versão fictícia de um notório escândalo em que um padre jesuíta seduzira uma jovem que o procurara para aconselhamento espiritual.
O jesuíta prega uma variedade radical de cartesianismo: ele expõe a dicotomia de Descartes entre o espírito e a matéria, instruindo sua aluna, mlle. Eradice, a distanciar sua alma de seu corpo por meio de exercícios espirituais -como, por exemplo, levantar as saias e concentrar-se no Espírito Santo, enquanto ele flagela suas nádegas. Ele lhe assegura que, se se concentrar o bastante, não sentirá dor alguma; sua alma abandonará seu corpo e ascenderá aos céus numa onda de êxtase espiritual.
Uma vez devidamente açoitada, Eradice está pronta para o exercício espiritual máximo: o intercurso sexual. O jesuíta explica que, graças ao uso de uma relíquia -um fragmento rígido da corda que São Francisco usava ao redor do hábito-, ela experimentará uma forma pura de penetração espiritual. Então, enquanto ela reza em posição quase prostrada, ele a possui por trás. A cena é descrita por Thérèse, heroína e narradora do romance, tal como ela a presenciou de um esconderijo:
"`Ah, padre,' exclamou Eradice. `Que prazer o de ser penetrada! Ah, sim, estou sentindo a alegria celestial; sinto que minha mente está completamente afastada da matéria. Mais, padre, mais! Extirpe todo o mal que há em mim! Estou vendo os an... jos. Meta mais... meta agora... Ah!... Meu... bom... São Francisco! Não me abandone! Estou sentindo a corda... a corda... não aguento mais... Estou morrendo!'
O episódio dá a Thérèse uma lição sobre os perigos do clero; é o primeiro passo de sua educação. Tendo aprendido como se livrar da autoridade da Igreja, ela segue o princípio do prazer por meio da física, da metafísica e da ética até o final feliz na cama de um conde filosófico.
Por estranho que possa parecer ao leitor moderno, sexo e filosofia caminham lado a lado por todo o romance. As personagens masturbam-se, copulam e, então, discutem ontologia e moral, enquanto restauram as forças para a próxima rodada de prazer.
Esta estratégia narrativa fazia perfeitamente sentido em 1748, ao mostrar como o conhecimento carnal podia abrir o caminho para o Iluminismo -o Iluminismo radical de La Mettrie, Helvétius, Diderot e d'Holbach.
No final, Thérèse torna-se uma "philosophe" de méritos próprios. Ela aprende que tudo pode ser reduzido a matéria em movimento, que todo conhecimento deriva dos sentidos e que todo comportamento deveria ser governado por um cálculo hedonístico: maximize-se o prazer e minimize-se a dor.
Mas, além de "philosophe", ela é mulher. A maior dor que pode imaginar é a da concepção, ainda mais porque sua mãe e sua antiga mentora quase haviam morrido durante os trabalhos de parto. Assim, por mais que goste de sexo e queira fazer amor com o conde que lhe faz a corte, ela decide que o intercurso sexual não vale o risco envolvido.
Em vista da demografia e da obstetrícia setecentistas, seus cálculos são perfeitamente razoáveis, tanto quanto sua solução: primeiro, a masturbação, e, finalmente, a prevenção da gravidez por meio do coito interrompido.
Como Thérèse é uma camponesa pobre e seu amante um conde, ela não pode nutrir esperanças de um casamento. Mesmo assim, faz um bom negócio: uma anuidade de 2.000 libras mais a gerência de seu castelo. Ela chega mesmo a ditar as regras no jogo amoroso -e, num dos primeiros episódios, afugenta um estuprador agarrando-o pelo pescoço. Em vez de aceitar seu destino, Thérèse recusa o papel de mãe e persegue a felicidade pessoal em seus próprios termos -enquanto mulher materialista, atéia e liberada.

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