São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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Entre o pudor e a volúpia

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Na pior das hipóteses, a coletânea de "obras proibidas" da Biblioteca Nacional nos dá dicas curiosas sobre o comportamento sexual no começo do século. O patriarcalismo imperava, as mulheres primavam pela fragilidade, as criadas eram lúbricas e submissas, os patrões tarados e adúlteros, e mais vexaminoso do que ser corno, só impotente. As moças virgens, em geral egressas de colégios de freiras, não conseguiam atravessar incólumes mais de duas páginas.
Certos autores esmeravam-se no chantilly sociológico. "Café Com Torradas", da Coleção Vênus, assaz comportada se comparada ao resto do acervo, foi vendida por uma "novela de costumes sociais, militares e civis". Tão mais recatados eram os livros dessa coleção que num deles, "Noite de Núpcias", encontrei esta jóia de pudicícia: "Dali a pouco, estavam ambos em trajes menores".
Nas demais, o eufemismo não tinha muita vez.
"Ela afagava cariciosamente a minha flecha de cupido que estava na sua máxima virilidade, eu retribuía essa carícia incendiária cofiando-lhe o soberbo e frondoso matagal que lhe assombrava o pórtico do amor". Assim se lê em outro "Noite de Núpcias", de outra coleção, a Verde, sapeca ao extremo.
E um viveiro de escribas alambicados. O campeão da especialidade é Agapito Garrido, em cujo "Por Obra e Graça do Espírito Santo", o coito sempre ganha foros de epifania: "Maravilhosas e torneadas pernas de alabastro e nácar, no dorso vigoroso do seu possuidor, acicatando com os calcanhares rosados o terminus robustus das costas do amante, numa ânsia turbulenta e inapagável de um fogo erótico, que conseguia aquelas formosíssimas carnes na onda imensa do prazer sem fim". Uau!
Outro, da mesma coleção e da mesma estirpe, apenas identificado com Armando, nos sufoca com descrições de paquidérmica sutileza. Como esta: "Esse soberbo espetáculo aumentou consideravelmente a pressão da caldeira; e Conrado, receando uma explosão inútil, empunhou a válvula e dirigiu-se para o receptáculo da descarga" ("A Família de Moral").
Como até o mais chinfrim dos pornógrafos sabe, as cenas de orgasmo exigem redobrada quota de imaginação, além de cuidados especiais para não cair no meramente escatológico. Quase todos erram a mão. J. Freeman, que assina "Em Plena Orgia" (da coleção Leituras de Alcova), não é uma exceção: "Ela entreabriu a rósea porta do templo e eu apertei os lábios por entre os quais a minha substância ainda escorria, deixando tudo meloso em redor". Inclusive o final da frase, acrescento eu.
Identificado pelas iniciais V.C.T., o autor de "A Família Beltrão" consagrou-se, aos meus olhos, como um dos beletristas mais afetados do "purgatório" da Biblioteca Nacional. Sua narrativa é um primor de grossuras ornamentadas. Eis como de sua pena nasce um coito anal: "Começou a rodar as nádegas em sentido redondo de moenda sob um eixo". E uma siririca: "Os dedos agitados de Roxo iniciaram dentro da sua concha cercada de negra pelugem um exercício cromático de piano".
Suas cópulas fariam D. H. Lawrence corar de vergonha. Três exemplos bastam para consagrá-lo definitivamente -ao menos entre os inquilinos do "purgatório".
Primeiro: "Com as pernas entreabertas e d'entre a pelugem macia escura de seu sexo brotava e deslizava-lhe por entre as coxas um fio lácteo como se fosse uma lágrima de pérola".
Segundo: "Mais um momento e as quatro coxas se encontraram, premidas nos seus ângulos aveludados e espessos e houve um grande beijo sensual, amalgamado, nos lábios do supremo amor!".
Terceiro: "Amanda ganindo surdamente, sentiu que toda a pujança do Roxo varava-lhe por entre os sedosos pelos, a sua rubra romã sequiosa de gozo, de prazer, de luxúria e de amor".
V.C.T. devia ter sérias e frustradas ambições literárias. Tal tormento não parecia molestar Manuel Brochado, useiro e vezeiro em gozar a hipócrita pomposidade dos seus colegas de ofício. Para ele, conforme se lê em "Rimas Picantes", o ato amoroso tem o seu lado ridículo ("A junção de dois entes que se adoram, e imaginam que de desejos se devoram, fazem papelões de causar riso"), razão pela qual, escabreado, confessa: "Himeneu, casamento, enlace, boda/chamem lá pela forma que quiserem/mas a cousa para mim chama-se foda".
Slogans não eram comuns. A Coleção Galante destacava-se mais pelo seu slogan ("Pequenos volumes de leitura quente, graciosa, apimentada, cheia de malícia fina, de espírito leve e requintada volúpia -para a mocidade ardente e a velhice alquebrada") do que pelos seus livros, mais maliciosos do que propriamente voluptuosos. O mais interessante deles tem um título que, para muita gente, dispensa explicações: "A Ordenhadora". (Sérgio Augusto)

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