São Paulo, quarta-feira, 12 de julho de 1995
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Filmes de Hollywood infantilizam adultos

MARCELO COELHO

Da Equipe de Articulistas S abe-se que a verdadeira Pocahontas, a índia real em que se baseia o desenho de Walt Disney, tinha 12 anos quando conheceu seu namorado inglês. No desenho, ela parece bem mais crescidinha.
A informação já foi bastante divulgada e é apenas uma curiosidade histórica. Mas indica um fenômeno bastante comum nos filmes de férias: o da confusão quanto à idade dos personagens. Há uma ambiguidade etária generalizada.
Gasparzinho, o fantasma, deveria ter uns seis ou sete anos: identificamos facilmente sua idade pela proporção entre a cabeça e o resto do corpo (corpo não é a palavra exata, mas vá lá); pelos olhos enormes e redondos, pela psicologia do personagem. No filme atualmente em cartaz, entretanto, o fantasma ganha uma nova encarnação; surge não como criança de sete anos, mas como um garoto de 14, já com a namorada esperando num bailinho.
Em "Batman Eternamente", aparece pela primeira vez na série a figura de Robin -que era para ser um menino órfão, adotado por Bruce Wayne. Mas Chris O'Donnell já parece ter passado um pouco da adolescência; pelo menos, não está em idade de precisar da proteção do Homem-Morcego.
Já os bandidos, como sempre foi regra nas histórias de Batman, são crianças totais: choram, esperneiam, vivem de brincadeiras, entre acessos de riso compulsivo e frustrações epileptóides.
Há algum tempo, "Hook - A Volta do Capitão Gancho", de Steven Spielberg, enredava-se nessa confusão temporal: Peter Pan, o menino que não queria crescer, era interpretado por Robin Williams, ator já veterano.
Qualquer dia, teremos Anthony Hopkins no papel de Pinóquio e Gérard Depardieu no de Pequeno Polegar. Os Três Porquinhos serão empreiteiros em Miami, Chapeuzinho Vermelho dona de butique, o mago Merlin campeão de skate.
Esses filmes fazem as crianças mais adultas e os adultos mais crianças.
Existe, é claro, uma razão de mercado para isso. Não é por acaso que se recorre tanto a personagens de histórias em quadrinhos e desenhos animados para atrair bilheteria. Mesmo sabendo que o filme é ruim -este último "Batman" é de amargar-, há curiosidade para ver como é.
Os pais têm de levar os filhos ao cinema. A confusão etária começa aí, já que os adultos reencontram os heróis da própria infância; estão mais dispostos a ver "Flintstones" do que "Cavaleiros do Zodíaco".
A TV tende a prolongar a infância de todo mundo. Desconfio que as impressões deixadas por um desenho sejam tão fortes numa criança que 20 ou 30 anos depois continuam a ser uma das principais referências culturais do adulto.
A própria linguagem do desenho animado é determinante. Sintaxe brusca, reações instantâneas, expressividade transparente. Sustos e catástrofes se sucedem, mas não há consequência definitiva.
Assim, o rolo compressor passa por cima do cachorro, este conhece por alguns segundos a forma e a vibração retesada de um disco de vinil, mas no momento seguinte retorna ao normal. Fred Flintstone pode ficar milionário ou louco da noite para o dia, mas sabemos que cada episódio terá de terminar num cotidiano igual ao do início.
Depois da Revolução Francesa, dizia-se dos descendentes do rei decapitado que eles nada tinham esquecido e nada tinham aprendido. Os megafilmes de Hollywood pressupõem do público o mesmo comportamento.
A estrutura do seriado, repetitiva, e o inócuo de todos os perigos enfrentados pelos personagens correspondem assim à estrutura psicológica do espectador -que vai de um filme a outro, procurando sempre se lembrar do que na verdade não esqueceu. Só esqueceu que o filme anterior era ruim; não tão ruim, contudo, para deixá-lo sem vontade de ver a continuação.
Esses filmes infantilizam o adulto. Mas não necessariamente pelo fato de trazerem de volta personagens da infância. Poderiam atender apenas a um saudosismo ocasional. Infantilizam à medida mesma que não atendem ao saudosismo; o que fazem é recolocar periodicamente o público numa expectativa, esta sim infantil, de diversão total e delirante, que se frustra. Pois imagino que para a criança toda diversão é também uma forma de conhecimento, de treino, de descoberta; mas o adulto não tem tanto a absorver e se distrai menos do que pensa.
Paradoxalmente, as crianças sabem disso, e os próprios filmes encenam esse estado de coisas. Nada mais comum, mesmo nos antigos seriados de TV, do que crianças sensatas às voltas com adultos completamente idiotas. Will Robinson, em "Perdidos no Espaço", por exemplo.
O caso de "Lassie" era o mais radical; imagino que, se a família fosse a um restaurante, seria a cachorra quem, por meio de ganidos desesperados e focinhadas no cardápio, faria os pedidos ao garçom.
É claro que o prazer da criança que vai ver "Batman" está na criancice do Charada. É um adulto lidando com brinquedos estrambóticos e dando pulos de alegria. A aberração da cena corresponde ao desejo infantil: "quero ser adulto para poder brincar o quanto quiser, para ver televisão de madrugada, para comer pipoca e milk-shake até estourar." O que cedo ou tarde acabamos fazendo. Mas o interessante é que isso é apresentado como aberração, como vingança contra o mundo adulto.
Sem dúvida, fazer o mal é mais divertido que fazer justiça. Batman, o próprio, é quem menos se diverte em todo o filme. Nos exemplares anteriores da série, apostou-se numa versão mais trágica e dark da coisa. Correspondiam à voga dos quadrinhos para gente mais velha, mostravam um herói torturado e perseguido. Não deu certo; eram ruins.
Agora, tenta-se voltar ao "velho Batman", com mais ação e colorido, com Robin e tudo. Surgem aí problemas mais delicados.
Assim como Gasparzinho teve de arranjar namorada, para evitar as notórias dúvidas que pairavam sobre sua sexualidade, a volta de Robin implicou, em primeiro lugar, encontrarem uma namorada para Batman; e, em segundo lugar, fazer de Robin um tipo auto-suficiente, revoltado, nada afetivo. As suspeitas de alguma queda homossexual terminam recaindo, de leve, sobre o mordomo Alfred.
Difícil imaginar um herói mais neutro e alheio ao filme do que Batman. Seu papel de maldito, seu mistério, sua solidão se anulam porque ele tem de ser mais são que seus inimigos; para que não seja gay, tem namorada; mas o caso com a namorada é insosso, porque ele tem de continuar misterioso e maldito; o círculo vicioso coloca Batman numa espécie de limbo sexual e Robin num limbo etário.
Falei dos adultos e das crianças que assistem esse tipo de filme. Tudo se resume, entretanto, ao problema da adolescência, idade do limbo por definição. Só que com um agravante: as crianças ficam espertas cada vez mais cedo e os adultos se idiotizam. De modo que o próprio espaço entre uma coisa e outra, a adolescência, se torna mais ameaçado de perder a própria identidade; o que antes já era problemático, agora é mais confuso do que nunca.

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