São Paulo, domingo, 16 de julho de 1995
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Confraternização cultural

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Embora afastado do pessoal, volta e meia sou convocado a uma dessas badalações que os promotores chamam de ``confraternização da cultura brasileira". Eu não sabia o que estava perdendo. Vejo passar pelos salões iluminados e floridos o novo gênio das letras nacionais.
A crítica se dividiu diante de sua obra, uns acham que é Flaubert, outros juram que é Faulkner. Pois ali está Flaubert dentro de Faulkner e ambos dentro do sujeito magro e de paletó malfeito. Vem a bandeja de salgadinhos, e o Faulkner se atrapalha com a azeitona que caiu do palito de Sartre -há, pelo menos, dois Sartres no salão, um em versão carioca, outro em modelo paulista.
Quem apanha a azeitona é o Dostoiévski do Piauí. Começam a suspeitar que ele também podia ser o Tolstoi de Recife, uma vez que, depois de ter nascido em Teresina, seu lance biográfico mais relevante foi o curso incompleto de direito em Recife.
Meio defasado, sem conhecer exatamente quem é quem, aperto a mão de Saint-Beuve e cumprimento obliquamente o Henry Miller das Alterosas que passa de braços dados com o Afonso Romano. De repente, o Ezra Pound de Campinas me pergunta onde tem água mineral, eu aponto o fundo do bar, onde o Italo Calvino baiano conta uma piada envolvendo papagaio, português e mulher da vida.
Empurro Sinclair Lewis para conseguir um canapé sem maionese, apenas com uma fímbria de salmão. Quando consigo, vejo que o canapé, que já não tinha maionese, também não tem salmão. Passa rente a mim o próprio Homero comendo o meu salmão.
Um sujeito lá na frente bate palmas, pedindo silêncio. Cinquenta anos atrás, era hora de alguém recitar o ``Mal Secreto", ou, se a platéia fosse menos exigente, ``A Vingança da Porta". Não há o que temer, os sonetos acabaram. Vamos ouvir agora um cientista social explicar as diferenças entre o pensamento de Weber, Ricardo e Adorno. Depois haverá uma rifa da Campanha pela Cidadania em favor dos excluídos do Betinho e de dona Ruth.

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