São Paulo, domingo, 16 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

quarteto fora de si

SÉRGIO DÁVILA; LÚCIA CRISTINA BARROS

marcas nunca antes atingidas, e começam a experimentar uma fama inédita. Além da marginalidade imposta, Mautner, Franco, Macalé e Tom Zé têm algo em comum.
São todos cinquentões (com cerca de três décadas de carreira), apresentam no currículo parcos cinco títulos, em média, e estouraram nos festivais dos anos 60 e no tropicalismo. E são originais. Ou esquisitões, depende do lado que se olha.

Maravilha e espanto
O "resgate" histórico começou no fim de 1994. Até então, as gravadoras haviam recolocado no mercado, em CD, títulos antigos dos grandes da MPB -gente como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento.
Frente ao sucesso, por que não começar a pensar também nos malditos? Responde Marcos Simões, gerente de marketing estratégico da Warner: "Vimos que havia um mercado específico para esses produtos.
A gravadora resgatou "Bomba de Estrelas", disco de 1981 de Jorge Mautner. Já vendeu 5 mil cópias e "pode chegar a 20 mil", segundo Simões. Agora, promete "Árvore da Vida", obra mautneriana de 1988.
"A capacidade de se maravilhar e de se espantar são básicas" filosofa Mautner. O quarteto maldito se juntou para a Revista da Folha na casa de Tom Zé, no bairro paulistano de Perdizes, numa tarde chuvosa.
Se a reunião foi insólita -nunca aconteceu nos palcos, por exemplo-, o cenário não poderia ser mais prosaico. Na sala do apartamento com chão de lajota, espalham-se piano, duas cadeiras de balanço e portas com maçanetas "vestidinhas.
Passarinhos vêm beber água doce de um frasco na janela e arrancam interjeições de Mautner e Franco. Na estante, livros de Hegel, Marx, Comte e Popper, poesia de Elliot. O dono do apartamento, o caráter mais simples dos quatro, tem o que contar.

Rezas para David Byrne
É que sua "recuperação" foi um pouco anterior à do resto do grupo. Em 1986, Tom Zé havia sido chamado para fazer um show em Santos. Lá, percebeu que ninguém sabia suas canções. Nem sequer quem ele era.
"Voltei para casa chorando e disse: `Nunca mais quero cantar. Para mim acabou. Vou procurar outro meio de vida'". Planejou um retorno à cidade natal, Irará, na Bahia, para tomar conta de um posto de gasolina, "por piedade" de um sobrinho.
Então o olhar estrangeiro interveio. Em Nova York, David Byrne (ex-Talking Heads) ouviu um disco de Tom Zé e quis conhecê-lo. O resto é história. O músico teve na Europa e nos Estados Unidos, depois de 25 anos de carreira, o sucesso que nunca conheceu por aqui.
(O norte-americano lançou "The Hips of Tradition" pelo seu selo, o Luaka Bop, distribuído aqui pela Warner. Já vendeu 50 mil cópias. "Rezo para David Byrne todos os dias", diz Tom Zé.)
Nos anos de ostracismo, cada um se virou como pôde. Mautner, que milita na cultura desde o começo dos anos 60 e ficou conhecido pelas músicas "Maracatu Atômico" (gravada por Gil), "O Vampiro" (gravada por Caetano) e "Lágrimas Negras" (gravada por Gal), diversificou.
Escreveu livros, deu palestras, trabalhou no filme "Festa", de Ugo Giorgetti, e até se candidatou a vereador em São Paulo (perdeu). "Não tinha ainda a sabedoria de conciliar inspiração e mercado", diz.

"Continuamos benditos"
Já Walter Franco atacou na produção de jingles para a publicidade. O músico paulista, autor dos célebres versos "Tudo é uma questão de manter/a mente quieta/a espinha ereta/e o coração tranquilo", tem uma explicação: "Briguei com a música, mas já me reconciliei".
Nos "anos de chumbo", Jards Macalé, talvez o mais genial deles, chegou a extremos: rachou com a mãe a pensão que o pai, vice-almirante da extinta Marinha de Guerra, deixou. "Durante esses anos malditos continuamos benditos", diz ele.
Macalé estourou em 1969, quando causou espécie no palco do Festival Internacional da Canção, ao defender sua "Gotham City" com guitarras elétricas -um tabu, então- e muito desbunde visual.
Logo em seguida, fez a direção musical dos antológicos discos "Transa" (de Caetano), "Fatal" e "Legal" (de Gal Costa) e "Drama", de Bethânia, todos no começo dos anos 70. Criou ainda trilhas de filmes e fez algumas pontas.
Então, brigou com o ex-amigo Caetano Veloso, nadou nu na baía da Guanabara em protesto à repressão, comeu flores e encontrou-se com o general Golbery do Couto e Silva em plena ditadura. Virou maldito.

Patifaria, sacanagem, boicote
Sobre este rótulo, aliás, há consenso entre os quatro: foi uma estratégia de marketing e vendas das gravadoras que acabou funcionando ao contrário. "Nos anos 70, os executivos achavam que pegava bem um artista ser `maldito'", lembra Mautner.
Aliado ao trabalho "difícil" (às vezes experimental, mas sempre inventivo e original) que faziam, o rótulo grudou nos quatro. E o público fugiu. "O problema é que nunca conseguiram nos classificar", acredita Franco. "Foi patifaria, sacanagem, boicote", faz coro Mautner.
"Era algo mais político que estético", diz Macalé. "Nessa época, chegou-se a acreditar num público só, que amava definitiva e irrevogavelmente a Xuxa ou o xuxismo", completa Tom Zé. Pode ser. Com as vendas atuais, porém, a revolta ganhou um gosto bom de passado.
E se esse passado pode ser revisitado agora de cabeça erguida, o mérito é também de um diletante da música. Tudo começou quando Valmir Zuzzi, 32, abriu sua Rock Company em 1992, na improvável cidade de Porto Ferreira, em São Paulo.
Em três anos escarafunchando arquivos descuidados, negociando fonogramas e garimpando obras, Zuzzi recolocou no mercado 14 títulos, dos quais dez da discografia de Mautner, Franco e Macalé.
"E não vamos ficar só nos relançamentos", promete Zuzzi, amparado pelas 5 mil cópias por título que consegue. De fato. Os três artistas já estão preparando trabalhos novos, inéditos, para lançamento pelo selo.

Doce vingança
Os quatro têm algo a dizer do relativo sucesso que vivem. Sem perder a verve. "O ano 2000 vai ser uma grande década de 60", aposta Walter Franco. "Será a novidade, o frescor recuperado", diz Jards Macalé.
"Os meninos que a professorinha da escola havia expulsado como moleques estão sendo de novo chamados para dizer presente, porque os tempos exigem artistas da sutileza, da emoção", acredita Tom Zé.
E Jorge Mautner pede, "com a melhor das intenções", a benção de "deus": "Eu estou pedindo que deus, no caso o Roberto Marinho, da Globo, conceda a graça bendita aos pobres malditos".
Qual graça? "Deixe-nos tocar".

Texto Anterior: diarréia censória
Próximo Texto: ponha água no seu feijão
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.