São Paulo, sábado, 22 de julho de 1995
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Os dilemas do pós-comunismo

RUBENS RICUPERO

O recente congresso do PDS, herdeiro principal do ex-partido comunista italiano, evidenciou os dilemas do pós-comunismo, tanto nos aspectos mais ligados à realidade da Itália como nos de validade universal.
Os primeiros têm muito a ver com o que foi por longo tempo a grande anomalia italiana: a existência do maior partido comunista ocidental no coração da Otan e do Mercado Comum Europeu. Daí decorreram, enquanto existiu a Guerra Fria, duas outras anomalias realçadas por Norberbo Bobbio em sua mensagem ao congresso: a impossibilidade de alternância no poder e o fato de ser a Itália o único país democrático europeu a não ter tido neste século um governo de esquerda.
O fim da URSS e do comunismo real finalmente descongelou o sistema político italiano do pós-guerra. Na busca de novo equilíbrio, o líder do PDS, D'Alema, resume seu objetivo no desejo de construir uma Itália ``normal", isto é, livre das anomalias que condenaram o PCI a não ter influência direta no governo, embora não se pudesse governar sem ele.
A tática do PDS para superar o teto onde o PCI sempre bateu (cerca de 35% do eleitorado) tem sido a de jogar no lixo o dogma estalinista de ``jamais ter adversários a esquerda". Pondo entre parênteses, por ora, o núcleo duro da Refundação Comunista, o PDS procura uma aliança com o centro, no qual ele entraria como o principal elemento de uma ``federação das esquerdas".
Sua base teórica seria um ``aggiornamento" do conceito de Gramsci de ``bloco histórico", isto é, a aliança dos operários do norte, camponeses do sul e intelectuais progressistas, reformulado como o ponto de convergência do ``mundo do trabalho, da empresa, das forças da cultura e pesquisa".
Desta vez, o adversário não é mais o velho centro da democracia cristã, mas uma direita nova, a de Berlusconi, cuja normalidade resta a provar para Bobbio.
Problema mais amplo é o que o operariado industrial, base do ``bloco histórico", vem declinando na Itália, como nas demais economias industrializadas, para não mencionar os camponeses, em vias de extinção. Resta, é claro, o vasto reservatório dos dependentes ou assalariados em geral, inclusive do setor de serviços em expansão.
É em parte devido à mudança da base social de uma eventual maioria hegemônica que o PDS abandonou o que sempre constituiu o fundamento da alternativa radical do socialismo em matéria de política econômica: as nacionalizações ou estatizações a fim de promover a propriedade coletiva dos meios de produção (como acaba também de fazer o labour britânico).
A fim de adquirir credibilidade como possível gestor de uma economia de mercado, o PDS acentua sua sensibilidade a ``obra de saneamento e contenção do déficit público, das privatizações, da segurança e estabilidade financeira, do equilíbrio e capacidade de governo, à necessidade de segurança, até psicológica, que produz a confiança dos mercados".
Ao tomarem emprestados temas antes privativos do centro e da direita, o pós-comunismo e a social-democracia correm obviamente o risco de perder a identidade. É o que censuram no congresso velhos comunistas como Ingrao ou o grupo do ``Manifesto". Os defensores, ao contrário, assumem claramente a necessidade de ``dizer adeus às velhas identidades". Pois seria hoje difícil ou impossível distinguir os valores do centro (o gradualismo, os limites da intervenção estatal, as regras claras, a mediação entre interesses) dos da esquerda (a igualdade social, a solidariedade, a promoção de todos, o primado dos bens coletivos).
De qualquer forma, D'Alema lembra não haver possibilidade de encaminhar temas como o desemprego e o do sul da Itália ``fora da Europa e fora do governo". A polêmica continua e, como previa Ignazio Silone, a batalha final parece destinada a ser combatida entre comunistas e ex-comunistas.
Aqui também a lição de sabedoria vem de Bobbio. É difícil dizer, ensina o mestre de Turim, se a sociedade italiana é mais antiliberal ou mais injusta. Para ser, porém, fiel à própria vocação, a esquerda deve preocupar-se, sobretudo, com o segundo aspecto. Dentre as reformas igualitárias ``urgentíssimas", destaca ele duas: a redistribuição do ônus fiscal e a igualdade de oportunidades na educação por meio da paridade de acesso e o prolongamento do período de ensino obrigatório.
Pode parecer pouco e decepcionante para os que ainda sonham com ``utopias concretas" ou com revoluções, liberais ou não. Destas, é sempre Bobbio a nos aconselhar, é melhor falar o menos possível, pois as revoluções, além de excepcionais e imprevisíveis, não são jamais ``normais".

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