São Paulo, sábado, 22 de julho de 1995
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Na contramão da dialética

LAURO CAMPOS

Uma cabeça dialética, apelidada de esquerdista, só poderia mudar seu conceito de Estado na medida em que o próprio Estado mudasse. Do contrário, o conceito seria falso, sem correspondência com o objeto, ou se tornaria irreal na medida em que deixasse de expressar as novas configurações assumidas pelo Estado.
Acompanhar o processo de transformação permanente do Estado, apreender as especificidades do Estado capitalista periférico, dependente, transpondo-as para o cérebro, onde o real passaria a ter uma existência ideal, na cabeça, deveria ser o objetivo do pensamento de ``esquerda".
Só o método dialético exige que as determinações do objeto, no caso o Estado, se modifiquem, se enriqueçam, se modernizem permanentemente. O desenvolvimento do objeto, sua realização na prática, é condição necessária para que o ``conceito" seja real.
A preservação do capitalismo é a principal função do Estado capitalista. Como o capitalismo é a mais transformadora forma de organização social da produção e de ``desenvolvimento tecnológico" da história, o Estado capitalista corre o risco permanente de ser transformado, superado pelas forças cujo desencadeamento ele promove.
A acumulação de capital em escala crescente é uma das necessidades técnicas vitais para que o capitalismo se reproduza. Em certo momento o Estado canaliza para a acumulação todos os recursos disponíveis, inclusive os das áreas sociais. No momento seguinte, o Estado capitalista é obrigado a negar os resultados do processo de acumulação que ele ajudou a desencadear no momento anterior, sob pena de ser tragado pela crise de superacumulação.
O Estado populista, getulista, foi substituído pelo moderno Estado industrial, concentrador da renda nacional, elitista, garantidor da reprodução do capital por meio da formação do mercado consumidor de mercadorias de luxo.
O Estado burocrático-militar percebeu que o padrão de acumulação de capital que legitimava o Estado do ``desenvolvimento e segurança" fizera com que se desenvolvessem barreiras intransponíveis pelos instrumentos de ação de que podia se utilizar.
O Estado capital-desenvolvimentista, ao se tornar inerme e ser envolvido pela crise financeira, muda seu discurso e passa a dizer que o moderno no Estado é a promoção do desemprego, doação das empresas estatais, privatização dos serviços de saúde, de educação, de aposentadorias, achatamento salarial, elevação dos juros, destruição do mercado em nome da economia de mercado.
Os ``neonadas" invertem o mundo: afirmam que aqueles sintomas da crise capitalista periférica não são a expressão do colapso, mas o resultado da nova inteligência do Estado esvaziado, crítico. O emagrecimento seria voluntário, a depressão, programada e controlável. A história reservou ao notável marxista FHC a tarefa de representar o Estado periférico em seu momento de desconstrução, de sucateamento.
FHC, que teve que se renegar, será obrigado a administrar o espectro do Estado capitalista periférico em seu momento de desestruturação, de negação. O homem que se negou é o mais adequado personagem para representar o Estado que é negado pelas forças que ajudara a promover. Quando o Estado muda, o seu conceito, para manter-se fiel à realidade, deve mudar e incorporar as novas configurações do objeto.

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