São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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O custo da demagogia

ROBERTO CAMPOS

``A perversão da monarquia é a tirania; a perversão da aristocracia é a oligarquia; a perversão da democracia é a demagogia."
(Aristóteles)

De 65 a 80, apesar de apenas cinco anos de conjuntura favorável e sete da mais séria crise mundial desde 1930, a economia brasileira cresceu 8,8% ao ano, diz o Banco Mundial, com um aumento médio dos preços da ordem de 31% ao ano -apenas ligeiramente mais do que a cifra anualizada da taxa média dos últimos seis meses! São números que merecem ser meditados. Em 1965 o Brasil estava procurando sair de uma complicada crise econômica, que era, na verdade, uma crise de modernização. Só o chamado passivo trabalhista, por exemplo, tornava impossível o gerenciamento racional de qualquer empresa. E havia problemas políticos e institucionais, herdados ainda dos primeiros 15 anos de Vargas que, depois de vários arranhões, acabaram por levar a uma ruptura da linha constitucional de 46. Não se trata aqui, no entanto, de discutir os eventos políticos de 1964. Apenas de registrar dados que, pelo relativamente longo período em causa, parecem indicar de modo evidente que o país possuía um formidável potencial de crescimento econômico, dos mais altos do mundo. O que, aliás, faz sentido quando se considera que nos primeiros 80 anos deste século o PIB brasileiro cresceu uns 5% ao ano, realmente um dos desempenhos mais notáveis entre todas as nações.
Em contraste, no período 85-93 (94 foi o ano do Plano Real e as cifras são pouco comparáveis) o PIB aumentou ao penoso ritmo de apenas 3,3% ao ano, enquanto que a inflação anual corria a mais de 730%, ou seja, à refrescante taxa média próxima de 22% ao mês. Se o crescimento tivesse continuado à mesma taxa de 65-80, o PIB teria obtido, em 1993, um acréscimo de mais de US$ 250 bilhões (tomando-se como referência para 93 US$ 420 bilhões)! E o somatório total do crescimento que deixou de acontecer, em todos esses anos, desde o começo de 85 até o fim de 93, equivaleria a mais 2,6 vezes o PIB real de 1985, ou seja, bem mais de US$ 800 bilhões!
Esses números, evidentemente impressionistas, não são apresentados aqui como comparação entre os dois regimes, o de 64 e o atual. Pretendem apenas ilustrar o fato de que houve uma ruptura, uma quebra no potencial de crescimento. A que atribuí-la? A dificuldades da conjuntura internacional? Estas, de fato, existiram. O pior período, porém, foi do final de 73, quando se deflagra o primeiro choque dos preços do petróleo, até 1984, quando os efeitos da pior recessão mundial desde 1930 e da crise de inadimplência do México, em setembro de 1982, começam a dissipar-se. Desde então, a economia mundial tem evoluído bem razoavelmente. Por esse lado, portanto, não podemos encontrar justificativas. Vamos substituir a patriotada pela autocrítica e olhar, em três períodos representativos, algumas comparações curiosas com o desempenho alheio.
Fica meio difícil de dizer que esses países, tão diferentes em regimes políticos e dotação de recursos naturais, alguns com um passado colonial não muito distante, tenham todos tirado a Sena acumulada. O que eles tiveram em comum foi a percepção de que precisavam de disciplina dos gastos públicos, poupança elevada e de liberalização econômica, com ênfase na atração de capitais externos e no máximo aproveitamento das oportunidades do comércio internacional.
Sob este último ponto de vista, aliás, o Brasil ainda é uma economia muito fechada, com uma exportação da ordem de 7% do PIB. Em contraste, veja-se a evolução da média mundial, a longo prazo.
Pode alguém reconhecer qualquer vaga semelhança com o nosso comportamento? O que de fato aconteceu, a partir de 85, é que a economia brasileira foi atropelada por uma série de erros. Alguns já vinham de antes. Entre os mais sérios, a enorme multiplicação de empresas estatais, desde o nível federal até o dos municípios, uma política de substituição de importações beirando a idéia de autarquia, levando-se a extremo exagero o que dera certo no desenvolvimentismo de Kubitschek. Esse viés ``autarquizante" teria sido adequado em 1939, às vésperas da Segunda Guerra, mas foi uma leitura errada da situação mundial durante as crises dos preços do petróleo.
Outros erros -e mais graves- foram cometidos de 85 em diante, culminando com o grande festival de loucuras da Constituição de 1988: multiplicaram-se gastos públicos e benesses variadas para todos os grupos e categorias suficientemente malandros ou barulhentos. Chamou-se a essa incontinência com os dinheiros públicos (por conta até do que ainda não existia) ``preocupação com o social". Já vimos acima a conta. E quem a está pagando, senão os mais desassistidos? Um ``nacional-progressismo" absolutamente mentecapto tratou de fechar as portas a qualquer coisa que cheirasse a capital estrangeiro. Durante anos, seguiu-se a idéia, tão idiota que não dá quase para compreender, da reserva de mercado da tecnologia... No caso da informática, uma geração jovem foi sacrificada na sua formação profissional para as demandas do mundo contemporâneo e o prejuízo sob a forma de perda de competitividade das empresas brasileiras foi imenso.
E não é só isso. Vivemos, estes anos, de planos e pacotes econômicos (e como gostavam da palavra heterodoxo, como se quisesse dizer qualquer coisa tecnicamente elegante...), mudanças de moeda, alegre multiplicação de índices de preços (que chegaram a várias dezenas) e uma ``nomorréia" -fazendo leis, decretos, portarias, atos normativos etc.- sem qualquer parecença no mundo civilizado. Tudo isso com enorme desrespeito ao cidadão, que tem direito a normas claras, bem conhecidas e a expectativas tranquilas. Expectativas, aliás, são fundamentais na teoria e na prática econômica. Só os governos brasileiros não sabem disso.
Esse custo econômico não é nada diante do pior, que é a falta de cidadania. Não somos cidadãos. Somos contribuintes, matéria passiva, súditos.

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