São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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Se segura, malandro

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

A cidade do Rio de Janeiro sempre deveu parte de seu magnetismo ao jeito singular de seus habitantes. Plantados à beira-mar, num cenário de real grandeza, os cariocas têm uma conhecida inclinação para o ``easy going". Um modo fresco de viver, de contornar problemas, de filtrar a vida através do humor.
Esse jeito, que ainda é cultivado civilizadamente por alguns, teve a dada altura, na figura do malandro, uma versão popular, semimarginal.
O malandro era o sujeito que vivia na corda-bamba, na fronteira entre o luxo e o lixo, o legal e o ilegal, a noite e o dia. Inimigo do mundo da produção, amante da música, das mulheres, do jogo, da boemia, ele levava a vida na esperteza, aplicando pequenos golpes, cometendo contravenções, metendo-se em brigas, mas quase sempre safando-se.
Num texto publicado na ``História Geral da Civilização Brasileira", Gilberto Vasconcellos e Matinas Suzuki Jr. chamavam a atenção para a malandragem, expressa tão fortemente na música popular, como fenômeno de resistência à valorização do trabalho no período getulista e no próprio desenvolvimentismo de JK. Oswald de Andrade dizia que o contrário do burguês no Brasil não era o proletário, mas o boêmio. E o professor Antonio Candido tratou do jogo entre a ordem e a desordem na sociedade brasileira no seu ``Dialética da Malandragem" -sobre ``Memórias de Um Sargento de Milícias".
Chico Buarque define o malandro, numa de suas canções, como o ``barão da ralé". A malandragem, de fato, constituiu uma espécie de aristrocracia do lúmpen. Teve seus fumos de dandismo, seus dias de glória, e virou uma referência nacional.
Mas fortemente enraizada no Rio, onde transformou-se num valor.
Ser malandro, fora do círculo da verdadeira malandragem, significava utilizar as virtudes ardilosas da improvisação, saber ``se virar", aperfeiçoar a rapidez e a engenhosidade nas soluções do cotidiano.
Ou simplesmente exercitar a argúcia no plano verbal: ter boas respostas na ponta da língua, flagrar o lado oculto da palavra alheia, criar bons chistes etc.
Há anos, o mesmo Chico Buarque anunciou que foi à Lapa -célebre bairro dos antigos boêmios do Rio- ver a tal malandragem e descobriu que ela não existia mais.
O Rio havia mudado. Cresceu, tornou-se mais difícil, competitivo e violento.
A cultura do malandro, no entanto, sobreviveu. Só que transfigurada pelo prisma de uma nova realidade.
Os atributos da malandragem, que tinham seu sentido e sua graça no Rio de ontem, passaram a se enrijecer, a migrar para outros setores, e acabaram virando uma norma perversa no Rio de hoje. Talvez porque a cidade, maltratada pelas crises, tenha ela própria passado a viver na corda-bamba, entre o luxo e o lixo, o legal e o ilegal, a noite e o dia.
Não é casual que a gíria número um dos cariocas nos últimos anos, já totalmente integrada à linguagem diária, gire em torno da palavra ``esperteza".
Tudo e todos são espertos -ou ``ishpiertos", no bom sotaque local. Come-se um peixinho esperto, pega-se uma praia esperta, fuma-se um fuminho esperto, fecha-se um negócio esperto, descola-se uma mordomia esperta, arruma-se uma boca esperta.
A ``esperteza" transformou-se em mediador privilegiado na sociedade carioca. Todos devem ser espertos em tudo -claro que mais do que os outros.
Tem-se a impressão de que ocorreu na cidade um fenômeno sociológico inusitado: a ideologia do lúmpen tornou-se dominante. O discurso da malandragem universalizou-se.
Talvez por isso pareça a coisa mais natural do mundo que o governo local dirija-se a seu cidadão, numa campanha pelo uso do cinto de segurança, com o slogan: ``Se segura, malandro".
Aparentemente, ninguém pensa em se sentir ofendido. Afinal, ser carioca é ser malandro mesmo.
O que pode não ser uma opção tão esperta assim.

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