São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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Fábula sexual em três atos

MICHAEL KEPP
ESPECIAL PARA A FOLHA

Imagine o escândalo provocado pela prisão do ator Edson Celulari, apanhado em flagrante ao fazer sexo oral em um carro com uma prostituta negra -o que incentivaria a TV Globo a reprisar a novela ``Fera Ferida". Quer dizer: o caso Hugh Grant poderia acontecer aqui, no Brasil? Será que o moralismo americano é tão facilmente globalizado quanto o poder econômico americano, até no Brasil?
Lembremos que a América é muito puritana a respeito dos tabus sexuais, especialmente quando estes se referem a Hollywood. Nos anos 50, Hollywood colocou Ingrid Bergman na lista negra por ela ter abandonado a família para viver com o diretor italiano Roberto Rossellini.
Grant quebrou um outro tabu sagrado. Ele fez sexo não com a atriz Julia Roberts, mas com uma prostituta negra. A imprensa americana não precisava mencionar a cor dela, por já estar estampada na foto policial. Bastaria taxá-la de ``puta". Dessa forma, a imprensa evitou o constrangimento de explicitar o maior tabu, o racial.
O Brasil, à sua maneira tão racista quanto os Estados Unidos, não trata as relações sexuais brancos-pretos como tabu. Historicamente, no Brasil, a miscigenação foi sempre a política oficial. Nos Estados Unidos, onde a miscigenação também aconteceu com frequência, a política oficial foi a de fingir que ela não existia.
A malandragem sexual, além de ser mais tolerada aqui do que lá, é também incentivada nos homens. Não causa o menor espanto o fato de Romário ter anunciado que está "pegando várias" ao mesmo tempo. O namoro de Romário em um carro, em frente à concentração do Flamengo, na véspera da grande decisão Fla/Flu, causou um pequeno escândalo, sim. Mas só porque o técnico Vanderlei Luxemburgo levou o público a crer que a displicência do craque fora a razão da derrota. E, no final, o Flamengo chutou Vanderlei e não Romário.
Na verdade, os brasileiros têm sua própria cegueira moralista. Eles ficaram indignados quando Itamar Franco foi flagrado com uma ``top model" sem calcinhas. Mas não deram a mínima ao fato de o presidente estar no camarote de um bicheiro.
Um outro caso mostra que os padrões moralistas que existem aqui não são tão rígidos quanto lá, nos EUA. Bernardo Cabral teve que largar o privilégio de ser ministro da Justiça depois do "Besame Mucho" com a ex-ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello. Mas nenhum dos dois teve que se confessar publicamente.
Quando Grant confessou seu arrependimento no "talk show" de Larry King, na rede de TV CNN, o apresentador perguntou-lhe se, por ter feito algo de tão "estranho, iria procurar uma ajudinha terapêutica. King nem pensou em questionar a hipocrisia de estar usando esse "algo estranho" para promover seu próprio programa. Pior ainda foi o oportunismo de Grant, ao usar a confissão em todos os talk shows possíveis para promover o seu novo filme, ``Nove Meses". E não vamos nos esquecer do público fingido, que, mesmo ofendido com o caso, correu para assistir ao filme, aumentando o seu sucesso estrondoso e a popularidade do ator inglês.
Esse circo, cúmplice de falso moralismo sexual, poderia acontecer aqui? Será que um Jô Soares sisudo perguntaria a Romário por que fez aquilo e, depois, sugeriria terapia? Não. Nesse país, muito menos puritano, sabemos que essas coisas "estranhas", por serem proibidas, dão um tesão especial.
Se Grant tivesse admitido isso diante da mídia americana e inglesa, que estava explorando o clima repressivo criado pelo caso, ele teria sido "comido vivo". E, pior, se tivesse denunciado todo esse circo, teria ele sobrevivido? Quantos astros de Hollywood fizeram carreira expondo-se dessa forma?
Grant tinha que seguir um roteiro já escrito. O personagem principal 1) trai sua imagem, 2) pede desculpas por tê-lo feito e, por fim, 3) é perdoado. Para Grant, ser absolvido primeiro pela namorada facilitou o resto.
O público americano já conhece o seu papel de cor nessa fábula sexual em três atos. É o enredo previsível de quase todos os melodramas hollywoodianos com finais felizes.
Eu não acho que um circo montado em cima dessa fábula possa acontecer no Brasil. Como os americanos, os brasileiros acompanham a sério a vida dos seus astros. Lembro-me do caso de Daniela Perez. Mas será que julgamos a vida desses astros com tanta falsidade?
Se Celulari fizesse o que Grant fez, qual seria o impacto? Será que ele seria culpado e absolvido, explorado e promovido e, por fim, exaltado, do dia para a noite? Ou será que tudo acabaria em pizza e gargalhadas?
A não ser que o jogo fosse com Cláudia Raia e um garotão de programas negro. Será que, desta vez, o assunto estaria encerrado?

Michael Keep é correspondente no Brasil do jornal dominical "The Observer", de Londres e da Fiarchild Publications

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