São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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O RISCO MODERNO

MARIO CESAR CARVALHO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

A sala de Lucio Costa, num predinho de cinco andares à beira da praia do Leblon, no Rio, está menos caótica. Já não se vêem pilhas de jornais, fotos, cartas, textos, desenhos, o caos que ameaçava soterrar o arquiteto que criou o plano urbanístico de Brasília. Aos 93 anos, ele concluiu ``Lucio Costa - Registro de uma Vivência", o livro de memórias que prepara há 12. O caos das pilhas de papel foi mais ou menos ordenado e sai em livro em setembro. O Mais! publica com exclusividade trechos da obra (leia nas páginas 5-6 a 5-8).
Explica-se o mais ou menos ordenado: ``Registro de uma Vivência" não é um livro de memórias ordinário. É como se Costa abrisse a sala de seu apartamento ao leitor e permitisse que ele ficasse ali fuçando a papelada.
E a papelada é um espanto. O livro de 608 páginas tem desenho feito nos anos 10 na Inglaterra, o primeiro projeto do arquiteto (1921-1922), cartas à mãe, as casas modernas criadas nos anos 30 que haviam caído no esquecimento, o projeto de 1936 para o Ministério da Educação, crônicas, ensaios (um deles escrito para um curso de pós-graduação que deu junto com Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre), os primeiros esboços de Brasília, a urbanização da Barra, no Rio, e planos que ficaram no papel.
Só quatro textos foram escritos especialmente para o livro, mas isso não tira o frescor da obra. Seus ensaios saíram em revistas de circulação tão restrita que parecem inéditos. Costa corre o risco de ser tratado como ensaísta-revelação com mais de 90 anos.
Brasília, projetada em 1957 e inaugurada três anos depois, é um divisor na obra do arquiteto e urbanista, mas é também seu tormento. A grandiosidade da empreitada de se criar uma nova capital para o país fez sombra em quase todos os seus outros trabalhos.
Contribuiu aí também um certo recato de Costa. Ao contrário de outros artistas modernos, para os quais a autopropaganda é às vezes tão importante quanto a obra, Costa fez uma revolução quase silenciosa. Ou, como diz Caetano Veloso num vídeo sobre o arquiteto: ``Ele tem a marca do modernizador que não agride o fluxo natural da vida. Para mim, é uma lição".
O livro repara o descaso que havia com sua obra, aquém e além de Brasília, ao apresentar pela primeira vez o arquiteto de corpo inteiro.
Nascido em 27 de fevereiro de 1902 em Toulon (França) e registrado na Embaixada brasileira, Costa é uma espécie de elo entre a arquitetura acadêmica e a moderna no Brasil.
Começou copiando casas normandas e coloniais, segundo o receituário eclético do começo do século, até descobrir que havia acontecido uma revolução no século 19 que transformara o método de construção. Foi o advento do aço e do concreto.
Com colunas e vigas de concreto ou aço, as paredes perderam a função de sustentar a estrutura da casa ou do prédio. Podiam ser substituídas por vidro ou ganhar formas independentes da estrutura. Era a autonomia da arquitetura moderna.
Costa diz, em entrevista exclusiva à Folha, que descobriu sozinho essa revolução, observando o descompasso que havia entre as novas técnicas de construção e as imitações que fazia.
``Descobri essa mudança por meio da minha própria desconfiança de que havia um desencontro entre a tecnologia e a arquitetura. Foi uma revelação. Depois dessa descoberta, no fim dos anos 20, fiquei intransigente. Não conseguia trabalho, porque me recusava a fazer casas de estilo", diz.
Conta também como convenceu o presidente Getúlio Vargas a trazer para o país, em 1936, o arquiteto franco-suíço Le Corbusier, o artífice da arquitetura moderna.
Sobre Oscar Niemeyer, o arquiteto que criou os prédios de Brasília sobre o traçado urbano de Costa, faz uma revelação. Nos anos 30, quando era estudante, Niemeyer queria pagar para trabalhar no escritório de Costa no Rio.

Folha - O sr. dizia que seus projetos mais recentes diferem dos antigos pelo maior apego à tradição. O sr. se desencantou com a arquitetura moderna?
Lucio Costa - Como passei muito tempo fora do Brasil, passei a gostar mais do meu país. Eu havia nascido em Toulon, vim bebê para o Rio e, em 1910, meus pais voltaram para a Europa. Só voltei ao Rio em 1916.
Meu pai era engenheiro naval. Fiquei sete anos seguidos na Europa, quatro deles na Inglaterra. Depois meu pai teve um desentimento com o ministro da Marinha e pediu reforma. Da Inglaterra, fomos para Paris e, no começo de 1914, para a Suíça, onde a Primeira Guerra nos pegou.
No fim de 1916 é que nós voltamos, às escuras, com medo dos submarinos, que já tinham afundado vários navios, inclusive brasileiros. O navio viajava às escuras, uma viagem um pouco penosa. Só conheci o Rio de Janeiro de verdade quando tinha meus 14, 15 anos.
Por ter vivido muito fora do Brasil é que eu sou mais brasileiro do que qualquer brasileiro.
Folha - Como o sr. foi parar na Escola de Belas Artes?
Costa - Meu pai sempre quis ter um filho artista e me matriculou. Engraçado, ele, como engenheiro naval, queria que eu fosse pintor ou escultor. Meus irmãos mais velhos foram para a engenharia elétrica. Eletricidade estava na moda.
Folha - O sr. estudou arte na Inglaterra?
Costa - Estudei desenho com uma professora muito bonita, miss Dorothy Taylor. Levava a gente a museus para desenhar pássaros. Foi professora das princesas Elizabeth (que viria a se tornar rainha da Inglaterra) e Margareth.
Quando eu voltei à Inglaterra, já rapaz, fui procurá-la em Newcastle. Ela já havia mudado, mas disseram que seria muito fácil eu obter informações sobre ela no Buckingham Palace. De Londres, liguei para o Buckingham Palace e, nem foi preciso botar mais um pennie, informaram-me que ela morava em Ditchling, sul da Inglaterra. Fui até lá, já era casado, mas ela me reconheceu pela voz.
Folha - Mas a volta à tradição significa um desencanto com a arquitetura moderna?
Costa - Não, não. A minha formação arquitetônica tinha sido tradicional. Estudava-se vários estilos, do gótico ao renascimento, para o aluno poder atender as encomendas, seja uma igreja ou um banco. Aí se recorria aos estilos antigos. Esse apego à tradição era uma coisa tão vinculada à realidade, ao momento presente, que não tinha esse divórcio que outras pessoas têm, de achar que o passado é uma coisa e a realidade é outra.
Folha - Quando o sr. entrou na Escola de Belas Artes, em 1917, havia um movimento pela volta ao passado colonial.
Costa - Eu peguei o movimento neocolonial. Era essa extravagância de querer voltar no tempo. Essa consciência de que as coisas mudam, mas o essencial fica, de um período para o outro, me dava a segurança de aceitar situações novas. Só depois dessa formação acadêmica é que comecei a notar que o estilo neocolonial era uma aberração. Aplicava recursos de arquitetura religiosa em arquitetura civil, fazia uma salada que não correspondia mais à realidade. Aí eu comecei a me desligar do chamado neocolonial.
Folha - Quando o sr. descobre a arquitetura moderna?
Costa - Foi tarde. Depois de formado, eu ganhei um prêmio na loteria e estava desencantado com essa clientela que queria casas de estilo inglês, francês, colonial.
Como estava com problemas sentimentais, com um namoro duplo, namorava duas Julietas, resolvi passar um ano na Europa. Lá andei como um turista, totalmente alienado.
Folha - O sr. se diz alienado, mas as cartas dos anos 20 revelam um juízo afinado. Alienado não escreve, como o sr. escreveu, que o Duomo de Milão era gótico de segunda mão.
Costa - Eu tinha uma boa formação profissional, mas era alienado em relação à arquitetura moderna. Não vi nada disso na Europa. Quando voltei, fui fazer outras coisas. O Rodrigo Mello Franco de Andrade, que foi para o Ministério da Educação com a Revolução de 1930, me convidou para dirigir a Escola Nacional de Belas Artes. Aceitei, para tentar reformular o ensino de arte no país.
Folha - O sr. já era um arquiteto famoso?
Costa - Era um arquiteto de sucesso, ganhava dinheiro, mas acadêmico. Lembro de uma senhora que me encomendou uma casa. Eu quis forçar a mão e fiz um projeto de uma casa contemporânea.
Foi pouco antes de 1930. A mulher não gostou: ``Eu venho aqui pedir uma carruagem e o sr. quer me impingir um automóvel!". Ela queria uma casa de estilo.
Folha - O sr. já conhecia Le Corbusier?
Costa - Conhecia vagamente. Era tão ignorante que, na volta da Europa de navio, brincávamos de forca a bordo, aquele jogo que a pessoa põe uma letra, e você tem que adivinhar a palavra toda. A primeira letra era a letra ``l", de Le Corbusier. Eu estava tão alheio que fui enforcado.
Folha - De onde saiu então esse ``automóvel" que o sr. fez?
Costa - Eu já estava sentindo a contradição de que a arquitetura acadêmica não tinha nada a ver com a tecnologia da construção moderna. Tinha havido uma revolução no século 19 que transformou a tecnologia construtiva. As paredes já não serviam para apoiar. Passaram a ser apenas invólucros e a estrutura da casa era independente da parede.

Continua à pág. 5-5

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