São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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O RISCO MODERNO

Folha - Com quem o sr. descobriu essa revolução?
Costa - Descobri essa mudança por meio da minha própria desconfiança de que havia um desencontro entre a tecnologia e a arquitetura.
Folha - Foi dedução própria?
Costa - Foi. Senti que havia um descompasso. Foi uma revelação. Depois dessa descoberta, no fim dos anos 20, fiquei intransigente como o novo rico, o novo crente. Não conseguia trabalho porque me recusava a fazer casas de estilo.
Folha - Foi a descoberta do concreto?
Costa - Foi. Aí fui estudar. Eu estava já casado, morando com meu sogro no Leme. Foi um período de pobreza, mas tive vários anos de estudo apaixonado da arquitetura nova. Fui me informando sobre Gropius, Le Corbusier, Mies van der Rohe, me apaixonei pela renovação e larguei totalmente a arquitetura acadêmica.
Folha - Essa literatura era disponível no Brasil?
Costa - Não, ninguém conhecia. Levei muitos anos sem trabalho, com dificuldades, porque ninguém aceitava a renovação. Os projetos eram rejeitados. A clientela era muito apegada à tradição, no mau sentido. Foram três, quatro anos de crise intelectual.
Folha - Foram os anos fundamentais na sua formação?
Costa - Foram. Muitos arquitetos se revelam num período de sucesso. Eu me formei no fracasso.
Folha - Por que o sr. não gosta que o chamem de arquiteto modernista?
Costa - Moderno é o certo. Modernista tem um ar pernóstico e um sentido suspeito. Parece que está se opondo ao que se fazia antes, à tradição, para fazer uma coisa obcecadamente moderna. Eu não via diferença. A verdadeira arquitetura moderna não promove uma ruptura com o passado, só a falsa. Isso acontece por causa da má formação de pseudo-arquitetos.
Folha - Os artistas modernos que o sr. expôs no Salão Revolucionário de 1931, como Lasar Segall e Tarsila do Amaral, não rompiam com o passado?
Costa - Não havia ruptura. Convidei os artistas modernos porque eles não compareciam ao Salão Nacional de Belas Artes. Eram rejeitados ou mal recebidos. Prevalecia a arte acadêmica. A escola só me aceitou porque tinha havido uma Revolução.
Folha - Como esse salão foi tratado na época?
Costa - Foi mal recebido pelos jornais, pelos artistas. Eu estava forçando a mão. Fui a São Paulo convocar os artistas paulistas da Semana de 22, Tarsila, Anita. Mário de Andrade veio também.
Foi uma novidade. Tinha uma parte renovada e todo aquele entulho dos artistas que compareciam todo ano. De ano para ano, parecia que era o mesmo salão, uma coisa muito monótona, pintores medíocres. Só uma minoria aceitava a arte moderna. Depois desse momento, o salão ficou mais aberto.
Folha - Muitos de seus projetos arquitetônicos dos anos 30, como a vila operária da Gamboa, são praticamente desconhecidos. O sr. esconde esses trabalhos?
Costa - Não escondo. É que na época eram mal aceitos. Desfiguraram totalmente a Gamboa. Fiz essa vila com o Warchavchik. Ele veio para dar aulas na Escola de Belas Artes e ficou. Tivemos um escritório juntos e fizemos uns quatro ou cinco projetos.
Vi um trabalho do Warchavchik pela primeira vez na revista ``Para Todos". Era aquela casa que ele fez na rua Toneleros, aqui no Rio. Foi a primeira vez que vi a possibilidade de fazer algo contemporâneo. A partir daí, comecei a me interessar pela arquitetura nova.
Folha - Le Corbusier e Gropius defendiam que a arquitetura moderna deveria estar à disposição das massas, mas vocês só faziam casas para grã-finos. Não era uma contradição?
Costa - Era uma contradição completa. É que o clima aqui era muito reacionário, muito negativo às renovações. O moderno era mal visto até pela sociedade culta.
Folha - Como é que um período tão reacionário formou os dois maiores arquitetos modernos do Brasil, o sr. e Niemeyer?
Costa - O Oscar ainda era estudante e já casado, tinha uma filhinha, e apareceu um dia no meu escritório com uma carta de apresentação do Banco Boavista. Ele queria trabalho.
O pai dele era uma pessoa de recursos, mas estava passando por um período um pouco difícil. Expliquei que era impossível, porque eu não tinha trabalho. Quando falei que não podia pagar nada a ele, o Oscar se prontificou a pagar. Ele queria pagar para trabalhar. Não aceitei, claro.
Mas falei que ele podia frequentar o escritório. Ele disse: ``Era justamente o que eu queria". Passamos a ficar amigos. Ele frequentou o escritório por mais de um ano e não revelou nenhuma qualidade.
Folha - Ele era medíocre?
Costa - Era simpático, mas não mostrou talento. Era só um desenhista. Na época, eu não apostaria um tostão nele. É para você ver como as coisas são enganadoras. Oscar só se revelou depois que Le Corbusier veio ao Brasil, em 1936. Antes, ele estava alheio ao Le Corbusier, não sabia nada disso.
Folha - Por que Le Corbusier foi chamado para opinar sobre o projeto para o Ministério da Educação?
Costa - Eu tinha feito um projeto que não agradava nem a Le Corbusier nem a mim. Era um projeto mal resolvido, ruim.
Folha - Não dá para entender como o governo Vargas convida em 1935 um arquiteto fascista, o Piacentini, para fazer o projeto de uma cidade universitária, e, no ano seguinte, chama Le Corbusier, que era tido como um arquiteto de esquerda.
Costa - Piacentini não era propriamente fascista. Todo italiano era considerado fascista. Era um movimento unânime. Por causa do Piacentini, o Gustavo Capanema (ministro da Educação) dizia que era impossível propor ao Vargas a vinda de outro estrangeiro.
Insisti tanto, que ele disse o seguinte: ``Eu levo você ao Vargas, e você explica. Eu não tenho condições de propor isso. O projeto que vocês fizeram está agradando".
Fui e tive um diálogo muito curioso com o Vargas. Ele disse: ``O ministro está muito satisfeito com o projeto que você fez. Por que eu vou chamar um estrangeiro?"
Argumentei, apaixonado, sobre a vinda de Le Corbusier, tão apaixonado que senti que estavam puxando meu paletó atrás, para eu parar. Era o Capanema, chamando a atenção de que eu estava exorbitando, ao falar com o presidente daquela maneira.
Folha - O que o sr. falou para o presidente Vargas?
Costa - Disse que era uma oportunidade excepcional, que não podia se perder, que essas coisas só acontecem uma vez. O Vargas disse: ``Então, chamem o homem". Foi como o avô que cede ao neto por causa de um capricho.
Ele veio no zepelim, de madrugada. Ficou um mês aqui. Deu conferências, opinou sobre o ministério e a cidade universitária.
Na época, não havia no mundo prédios de arquitetura moderna com o porte do Ministério da Educação. Só havia coisas mais modestas. A responsabilidade e a dificuldade eram enormes. Por isso chamamos Le Corbusier.
Folha - O que ele sugeriu para o prédio?
Costa - O Le Corbusier não teve nenhuma participação. O grupo que fez o projeto era apaixonado por Le Corbusier e procurou fazer o que o Corbusier gostasse. Ele fez um risco para um ministério, um projeto alongado. Ele sugeria que não fosse feito ali onde seria construído, mas num terreno à beira-mar. Dizia que o ministério ficaria cercado de prédios vulgares. Ele estava certo.
Mas o Capanema não aceitou. O governo tinha pressa, não tinha tempo para buscar outro terreno.
Folha - Quem decidiu que o prédio do Ministério da Educação seria feito por um grupo?
Costa - O Capanema havia me convidado, mas abri mão do projeto individual. Foi meu primeiro gesto acertado. Sou muito individualista, não gosto de trabalhar em grupo, mas as circunstâncias pediam um grupo.
Eram quatro arquitetos: eu, Carlos Leão, Afonso Eduardo Reydi e Jorge Moreira. Oscar e Ernani Vasconcelos entraram depois. O Moreira queria pôr um sócio dele no projeto, e o Oscar disse: ``Se o Moreira quer pôr o sócio dele, eu, que participo do projeto como amigo há um ano, também quero entrar". Cada um ganhava um conto de réis por mês.
O Corbusier só conheceu o ministério depois de pronto. Não tem nada dele no prédio.
Folha - Em 1937, o sr. dirigia o grupo que projetava o prédio do Ministério da Educação e, ao mesmo tempo, estava no patrimônio histórico. Como era possível conciliar arquitetura moderna e preservação histórica?
Costa - No estrangeiro, quem gosta de arquitetura moderna detesta a tradição e vice-versa. Aqui foi diferente -o moderno e a tradição andavam juntos. Eu chefiava a divisão de Estudos e Tombamentos do Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Achava que a arquitetura moderna não devia contradizer nossa tradição.

Continua à pág. 5-6

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