São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

De que Brasil é este banco?

HERBERT DE SOUZA

A cena é de ``Carlota Joaquina, rainha do Brasil", o primoroso filme de Carla Carmurati. O ano é 1808, e d. João 6º, que desembarcara no Brasil com a corte portuguesa, enfrentava dificuldades para gerir as finanças da colônia e sustentar a monarquia vigente.
Até que o rei parece encontrar a grande solução para todos os seus problemas: criar um banco, o Banco do Brasil. Nascido e batizado na monarquia, o BB foi concebido para atender às necessidades financeiras do Estado que então o fundava e, de quebra, ainda permitir que o rei tivesse nas mãos um excelente instrumento de barganha política para conquistar aliados. Em troca, ganhavam um emprego.
O documento do Conselho Fiscal do Banco do Brasil levantado pelo jornalista Janio de Freitas (Folha, 14/7/95) mostra um Brasil que deixou de ser colônia, mas que desse mal não se livrou até hoje. As dívidas do próprio setor público e do setor privado com o banco demonstram, também, que essa conta é de poucos, mas que devem muito. Essa parece ser a consequência natural do comportamento do Estado em relação ao BB desde d. João 6º.
Mas se a história do banco é contada assim no cinema, o que a realidade demonstra é uma instituição de dimensão nacional, com funcionários de indiscutível qualidade, reconhecida como uma das melhores empresas públicas do país, ao lado da Petrobrás e da Vale do Rio Doce. As práticas políticas não foram capazes de destruir a seriedade, a grandeza, a eficiência e a força do BB. É exatamente por todas essas qualidades que o banco é objeto do desejo e da disputa de tantos interesses.
É possível e provável que seja necessário mudar, sim. Sempre defendi maior sintonia do banco com o pequeno produtor e o pequeno empresário e uma postura mais ampla e agressiva na agricultura. Mas se há, de fato, um grande projeto de mudança -e não me parece que esteja claro para a opinião pública que haja-, é preciso levar em conta a situação do funcionalismo.
É urgente reconhecer o papel social do banco, uma instituição pública com um papel fundamental a cumprir. E que, portanto, qualquer projeto de mudança deve incluir governo, funcionalismo e sociedade. Da maneira como vem sendo conduzida, parece mais assalto do que mudança, mais golpe de Estado e intervenção do que transformação com participação.
As transformações a serem feitas devem ter como objetivo levar o Banco do Brasil a ser cada vez mais uma empresa pública comprometida com a democracia, a eficiência e o desenvolvimento nacional. E é de empresas assim, sejam estatais ou privadas, que o país precisa.
Não há, portanto, predisposição contra mudanças. Mudar pode ser bom, mudar tem que ser para melhor. Mas essa mudança é necessariamente resultado de uma negociação ampla. Democracia se faz com negociação e conversa, e governo, direção, funcionários e sociedade precisam definir juntos esse caminho.
Mas isso parte também do reconhecimento de que o governo não é proprietário absoluto do Banco do Brasil. O BB é um ator político importante, especialmente em cidades do interior, onde agências são motores de desenvolvimento. Por estar enraizado na sociedade e constituído como instituição nacional, o Banco do Brasil tem papel estratégico na irradiação de políticas de governo.
Dona Ruth Cardoso sabe que tem no banco seu principal instrumento de trabalho, sabe do papel estratégico na geração de emprego, no apoio ao microempresário, sabe que o Banco do Brasil é uma grande força auxiliar no programa Comunidade Solidária.
Como presidente do conselho, dona Ruth precisa participar do processo de mudança do BB e não apenas ser espectadora deste desmonte anunciado. O banco é uma instituição social e o maior auxiliar de políticas que qualquer governo inteligente precisa ter ao seu lado.
Os funcionários do BB, estes que estão sendo chamados a pagar a conta, estão desde 1993 mobilizados numa ação nacional e espontânea de combate à fome e à miséria. Foi com os funcionários do BB que a Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida se espalhou pelo país e montou oficinas de costura, padarias e hortas comunitárias, creches, cursos profissionalizantes e todo tipo de iniciativa capaz de distribuir dividendos sociais.
O Banco do Brasil é uma instituição que se apóia com um pé no mercado e um na sociedade, e que não pode, portanto, levar em conta apenas os critérios do mercado para fazer suas mudanças.
A reestruturação, para ser democrática, precisa ser feita com negociação. O BB é uma empresa pública, e sua principal vocação é social. O mercado não pode, portanto, ser a referência essencial de qualquer mudança.
Por não ter aprendido ainda o ofício da negociação, o governo já foi obrigado a rever posições no debate sobre a reforma da Previdência e na medida provisória da desindexação da economia, porque reações da opinião pública ou mesmo do Judiciário demonstraram que negociar é preciso.
O BB vive hoje um conflito entre ser um banco social, com um corpo de funcionários respeitado e capaz de cumprir esse papel, ou ser sempre o banco de d. João 6º, credor do erário público, o banco da inadimplência privada. A solução desse conflito está na sociedade, que precisa responder à grande questão: de que Brasil é este banco?

Texto Anterior: Acesso a tecnologia, não-proliferação e política externa
Próximo Texto: Fundação Seade; Tortura e torturadores; Caso Banespa; Ladrões de galinhas; Indignação na Noruega; Vietnã; "Caminhonaço"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.