São Paulo, quarta-feira, 26 de julho de 1995
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Mostra comemora centenário de Goeldi

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

``Nunca sacrifiquei a qualquer modismo o meu próprio eu -caminhada dura, mas a única, que vale todos os sacrifícios". Esta confissão, escrita em junho de 1949, pode ser lida no convite para a exposição comemorativa do centenário do Oswaldo Goeldi, que hoje se inaugura no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, lá ficando até 1º de outubro. A frase resume à perfeição a trajetória do nosso maior gravurista: artífice intransigente, que nunca se dobrou aos estilos passageiros e fez da solidão um modo de vida e um método de trabalho; "um europeu sentimental exilado no Brasil", conforme ele próprio gostava de se autodefinir.
Por que, com tanto talento, não estendeu sua capacidade criadora a telas e murais? Porque não quis. Porque, ao contrário dos que dele cobraram vôos supostamente mais altos, não via na gravura um suporte menor, subalterno. Em arte, como em muitas outras coisas, tamanho não é documento. Um grande gravurista vale mais que um pintor apenas bom. Goeldi provou isso da maneira mais prática e irrefutável possível.
É um Brasil teutonicamente sombrio, noturno, expressionista mesmo, que suas gravuras revelam. Seu Rio, chuvoso, despovoado e espectral, é o oposto de um paraíso tropical, abençoado por Deus e radioso por natureza. Nas fantasias visuais de Goeldi, as dualidades -vida e morte, luz e sombra, lua e sol- saltam à vista. Ao se mudar para a praia do Leblon, quando ali quase que só habitavam pescadores, desvencilhou-se de suas amarras européias e descobriu não apenas outras cores, além do preto, branco e cinza, mas também uma nova luminosidade, com gosto de sal.
Morto há 34 anos, talvez seja conveniente esclarecer que o patrono do Museu Goeldi, em Belém do Pará, é outro Goeldi, o naturalista Emílio, seu pai. Oswaldo tampouco nasceu na Suíça, mas numa das ruas mais recônditas do machadiano bairro do Cosme Velho, na zona sul carioca, ainda hoje chamada Ladeira do Ascurra. Na Suíça ele apenas estudou, primeiro menino, depois na juventude, quando a Primeira Guerra Mundial atraiu alguns dos espíritos mais inquietos da Europa para Berna e Zurique.
Goeldi não frequentou Joyce nem Tzara ou qualquer outro dadaísta. Acercou-se de artistas plásticos como o nativo Hermann Kuemmerly, de quem se fez parceiro, e o austríaco Alfred Kubin, seu mestre até na arte da reclusão. "Nem Munch, nem Ensor ou Barlach me comoveram tanto", escreveu Goeldi, a propósito de Kubin, cujas grotesquerias, enraizadas em Bosch e Brueghel, influenciaram artistas de gerações e formações diversas, entre os quais o escritor Ernst Juenger. Sua intensa correspondência com Kubin e Kuemmerly (outro misantropo santificado pelo amor à natureza e aos animais) também faz parte da mostra "Goeldi: Um Auto-Retrato".
Ao retornar ao Brasil, depois da guerra, Goeldi encontrou dando as cartas por aqui o que Manuel Bandeira chamava de "monótono realismo anedótico, sem emoção ou poesia". Logo caiu nas graças não só do "poeta do Castelo", mas também do escritor Anibal Machado, da poeta Beatrix Reynal e do jornalista Álvaro Moreyra, que lhe abriu as portas da imprensa, onde o artista ganharia o seu sustento, fazendo ilustrações para jornais ("A Manhã) e revistas ("Para Todos, "O Malho").
Embora estivesse de novo do outro lado do Atlântico quando aconteceu a Semana de Arte Moderna, não demorou a integrar suas hostes, revolucionando nossa linguagem gráfica e ilustrando algumas de suas obras capitais, como o romance de Graça Aranha, "Canaã", e "Cobra Norato", de Raul Bopp. Mais tarde, seguindo o exemplo de Kubin, ilustrou a obra de Dostoievski e marcos das carreiras de Cassiano Ricardo ("Martim Cererê"), Gustavo Corção ("Lições de Abismo") e Jorge Amado ("Mar Morto"). Foi através de suas ilustrações que tomei conhecimento de sua existência. Por certo, não fui o único. Para quem ainda não se redimiu de tal limitação, a mostra do CCBB não é um bom, mas o melhor começo.

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