São Paulo, quarta-feira, 26 de julho de 1995
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Textos de Lima Barreto emanam atualidade

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A Folha está distribuindo aos assinantes um livro com crônicas escolhidas do escritor Lima Barreto (1881-1922). O autor de "Triste Fim de Policarpo Quaresma" surge aqui em textos circunstanciais, sem nenhuma pretensão. Lê-se o livro sem esforço e, certamente, com prazer.
Mas se quisermos entender que tipo de prazer é esse, as coisas se complicam. Esses textos não produzem encantamento no leitor, raramente suscitam o riso, ou a vertigem de que era capaz a diabólica frivolidade das crônicas machadianas.
Não há grandes efeitos de linguagem, nem se torna especialmente sensível aquele tom de descompromisso, o desalinho ideológico, a liberdade temática que fazem a graça do gênero.
O que acontece, então, quando lemos as crônicas de Lima Barreto? Duas coisas, talvez contraditórias. A primeira é a sensação de "atualidade" que emana desses textos.
Em 1915, o autor escrevia um pseudomanifesto político, propondo de brincadeira sua candidatura à Câmara dos Deputados. "Nada mais justo: não pretendo fazer coisa alguma pela Pátria, pela família, pela humanidade".
Além disso, anda malvestido e quer ganhar mais. Numa crônica de 1920, ironiza o costume que diz que o Brasil é "um país rico": há falta de hospitais, o governo não os constrói por falta de verbas; não há escolas, o governo nada pode fazer, mas todos concordam que vivemos num país rico...
Defesa das mulheres, críticas à destruição de áreas verdes, proposta de reforma agrária, muito do que Lima Barreto dizia na década de 10 continua a ser dito hoje. Nessas crônicas, que buscam não o prazer, mas a concordância do leitor, há muito de sensato e atual.
Mas precisamente essa pertinência e o bom senso de suas observações incomodam um pouco. Tende a provocar no leitor um comentário meio admirativo e meio tolo: "Puxa, você vê? Já naquela época as coisas eram assim!".
Fui visitar certa vez uma igreja barroca em Minas. O guia explicava tudo. Disse algo a respeito dos ladrões de obras sacras e das medidas de segurança que eram tomadas, no século 18, contra o furto de peças de ouro.
Ao meu lado, um participante da excursão ficou espantado. "Ladrões, hem? Já naquela época!" Como se em alguma época não houvesse ladrões. Decerto ele se sentia transportado para um passado tão remoto que qualquer coisa reconhecível, qualquer problema público semelhante aos atuais era motivo de pasmo.
Há autores que nos surpreendem pela atualidade, mas não desse modo. Quando lemos um ensaio de Montaigne, por exemplo, o mais importante não é o fato de suas observações ser aplicáveis, sem tirar nem pôr, aos dias de hoje. Temos a sensação de que poderíamos estar conversando com ele, aqui e agora, não porque concordasse ou discordasse de nosso modo de ver, mas pelo extraordinário desarmamento de seu espírito.
A sensação de atualidade, ou melhor, de contemporaneidade, surge como subproduto de uma outra coisa. À falta de nome melhor, poderíamos dizer que se trata da "inteireza" com que o autor se apresenta para nós. Seu texto é imprevisível, segue as leis de uma personalidade única, não das opiniões que possui.
Há toda uma ciência na mudança do tom de voz, na passagem do reflexivo ao confidencial, como que mobilizando seu corpo inteiro: sentimos quando Montaigne está dando de ombros, está cruzando as pernas, está pigarreando, ou quando um sorriso apenas esboçado se apaga em seu rosto.
Essa atualidade é, digamos, uma forma de presença subjetiva, como se Montaigne fosse um amigo com quem nos encontrássemos quase todos os dias.
A forma da crônica não prescinde, a meu ver, dessa espécie de ficção, desse artifício de simular no texto os arranques, os gestos, os olhares e alterações na voz que ocorrem na comunicação ao vivo.
Não é por acaso que hoje em dia se fala demais em crônica e se procura reviver o gênero. Num momento de profunda desideologização, de desconfiança face a qualquer tipo de militância política e discussão de idéias, parece fácil escrever crônicas, entendidas mais ou menos como conversa mole.
São raros, entretanto, os exemplos de cronistas realmente capazes de corresponder às exigências do gênero. Não é uma questão de encenar a falta de assunto, o ceticismo ou a frivolidade; trata-se de fazer do "nada" que é o assunto escolhido um meio de expressão pessoal; eu diria até um meio de expressão corporal.
Voltando a Lima Barreto. A atualidade de suas opiniões não é o mais interessante do livro. O prazer que oferece não é propriamente literário. Mas existe. Onde?
Creio que está nos momentos em que aparece, a rigor, o oposto da "atualidade" -o inatual, o sabor da época, o lado "tempo do onça" de suas crônicas.
Leia-se, por exemplo, a crônica em que ele lamenta o ritmo da urbanização do Rio de Janeiro. Lima Barreto diz não compreender por que a cidade tem de se estender até o Lee e Copacabana.
Protesta contra o desaparecimento das chácaras que havia em Botafogo e Laranjeiras. Ironiza -mas para nós a ironia é outra- a idéia de criar uma polícia nos subúrbios cariocas: "Os pequenos furtos de galinhas e coradouros não exigem um aparelho custoso de patrulhas e apitos". Nota as zangas do Estado contra "os farmacêuticos que vendem cocaína".
Um Rio de Janeiro de subúrbios tranquilos e de chácaras, em que a cocaína era vendida em farmácias, em que a moda das cartomantes era assunto para crônica, estava em vias de desaparecer; constroem-se alguns arranha-céus na cidade -pura macaqueação dos americanos, diz Lima Barreto; querem fundar uma universidade: o autor diz que isso é coisa de filhinhos de papai. Pessoas eram presas pelo crime de vadiagem.
Não é nos problemas que persistem, mas nos assuntos que já desapareceram do cotidiano, que se encontra o charme das crônicas.
O que eu disse acima, acerca da corporalidade de estilo necessária ao bom cronista, pode então ser nuançado. Mesmo sem recorrer a um artifício de escrita, a espontaneidade e o frescor do texto podem aparecer no momento em que o autor, sem defender idéias, é testemunha da época. Não no que tenha de atual, mas de passageiro.
O decorativo de uma palavra em francês, de uma construção alambicada surge então como a moldura art nouveau que cerca uma fotografia antiga.
Não há grande arte na obra do fotógrafo; mas a moldura e o retrato criam, involuntariamente, um fascínio: o de ser documentos de vida, de trazer, numa espécie de mágica sem pretensão, uma obviedade, um corriqueiro que já se tornaram misteriosos para nós, graças à simples passagem do tempo.

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