São Paulo, sábado, 29 de julho de 1995
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Político é malvisto no atacado e bem-visto no varejo

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Eu também sou candidato a deputado. Nada mais justo. Primeiro: eu não pretendo fazer coisa alguma pela pátria, pela família, pela humanidade. Um deputado que quisesse fazer qualquer coisa dessas ver-se-ia bambo, pois teria, certamente, os 200 e tantos espíritos dos seus colegas contra ele. Contra as suas idéias levantar-se-iam duas centenas de pessoas do mais profundo bom senso.
Assim, para poder fazer alguma coisa útil, não farei coisa alguma, a não ser receber o subsídio. Eis aí em que vai consistir o máximo da minha ação parlamentar, caso o preclaro eleitorado sufrague o meu nome nas urnas. Recebendo os três contos mensais, darei mais conforto à mulher e aos filhos, ficando mais generoso nas facadas aos amigos.
Desde que minha mulher e os meus filhos passem melhor de cama, mesa e roupas, a humanidade ganha. Ganha porque, sendo eles parcelas da humanidade e sua situação melhorando, essa melhoria reflete sobre o todo de que fazem parte.
Espero que o leitor tenha notado as aspas desde o começo deste comentário, até o fim do parágrafo anterior. Se não notou, esclareço: nada do que ali está escrito é meu. Foi produzido pelo autor de "Triste Fim de Policarpo Quaresma, Afonso Henriques de Lima Barreto, publicado em janeiro de 1915 (sim, há 80 anos!) e republicado, ainda atualíssimo, por esta Folha de São Paulo, num opúsculo distribuído a novos assinantes, sob o título "Crônicas Escolhidas, conforme excelente anotação de Marcelo Coelho, na última quarta-feira.
Por que fiz a transcrição? Simples. Foi para mostrar que a música de um conjunto de "rock, fazendo alusão aos 300 picaretas detectados por Luiz Inácio Lula da Silva, no Congresso, não é novidade. Chamar atenção para ela, tentando proibi-la, transforma a criação de duvidoso bom gosto em "hit. A censura odiosa faz de sua vítima um herói.
A honra individual e a honra das instituições (se assim se pode dizer) merece a proteção legal. Insisto, porém, numa diferença. O detentor do poder tem meios muito eficientes para responder a quem o ofende. Não é assim para o homem comum. A honra é igual para todos os que a têm. Contudo, o aplicador do direito não pode ignorar que o homem público, o grande esportista, o artista, a figura socialmente notória está mais exposta ao abuso, pela própria natureza de suas condições, mas tem mais facilidade para a resposta. O tratamento tem de ser diverso do atribuído ao cidadão, desprovido de notoriedade, mas cioso de sua honra, de sua intimidade, de sua imagem.
Voltaire, que morreu há mais de 200 anos, já dizia que a fonte da política está mais na perversidade que na grandeza do espírito humano, enunciando verdade indiscutível quando se cuida de governos totalitários. Nesses, a finalidade da política se resume (ou, pelo menos, está centrada) em monopolizar o poder, enquanto prioridade máxima do grupo dominante.
Nos governos democráticos o fim da política é realizar a vontade média dos grupos que se entrechocam.
Considerando que estamos num país no qual predomina a democracia (está assim no art. 1º da Constituição), a liberdade de opinião é plena, sem a censura espúria. Um dos sacrifícios que a vida impõe ao político é o de, século após século, merecer a desconfiança da sociedade como um todo, mas se mantendo ao redor das luzes do poder, conduzido e reconduzido pelos mesmos eleitores, no varejo do voto.

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