São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um embuste simpático...

ROBERTO CAMPOS

``O socialista é um camarada que protege seu bolso e alivia sua consciência, fazendo justiça social com o dinheiro dos outros"
Do ``Diário de um Diplomata"

Há leis que pegam e leis que não pegam. Uma que sempre pega é a lei da oferta e da procura, irritante para os políticos, pois não foi votada nem publicada no ``Diário Oficial". Mas representa uma das grandes invenções espontâneas da humanidade, a par com a religião, a língua e o mercado. Sua operação inexorável é motivo de revolta. Sempre sai o tiro pela culatra. Tabelados os juros, há desintermediação e pagamentos por fora. Congelados os preços, há mercado negro. Reprimidos os aluguéis, ninguém mais constrói para locação.
Infelizmente, a inexorabilidade da lei da oferta e da procura se aplica também ao mercado de trabalho. Os governos se cansam de decretar aumentos de salários nominais, mas o que acontece com o salário real é decidido pelo mercado e não pelo ``Diário Oficial". Se leis salariais resolvessem, a pobreza já estaria extinta no país.
Aumentos reais de salários só podem ocorrer pela diminuição da oferta, pelo aumento da procura ou pela melhoria da produtividade da mão-de-obra. Diminuir a oferta é difícil. No longo prazo, isso pode ser feito pelo planejamento familiar, visando a um armistício com o espermatozóide. No curto prazo, pela emigração (dizem os cínicos que conter a oferta de mão-de-obra era a função saneadora das guerras e epidemias no passado). Fundamentais são as medidas de incremento da demanda da mão-de-obra: abolição dos monopólios, para eliminar gargalos produtivos; privatização de estatais, pois o governo falido perdeu capacidade de investir; abertura a capitais estrangeiros, para aumentar oferta de empregos; desregulamentação da economia, para reduzir custos e liberar energias empresariais; reforma da previdência, para transformá-la num instrumento de poupança para alavancagem do desenvolvimento; e, ``last but not least", a flexibilização das relações capital/trabalho, para diminuir o custo da contratação. A melhoria da qualidade exige investimentos em educação.
Num país subdesenvolvido como o Brasil, com excedentes de mão-de-obra destreinada, a preocupação obsessiva não deve ser o nível de salários e sim o nível de emprego. Em matéria de política salarial só há duas coisas que o governo pode utilmente fazer: promover a livre negociação salarial e buscar a preservação do valor dos salários, pelo controle da inflação.
A livre negociação, em todos os níveis, tem sido objetivo explícito de vários governos. Mas o medo de resistências sindicais e a percepção da propensão demagógica do Congresso, resultam em projetos ingenuamente intervencionistas. É tempo de reconhecermos que a definição, por lei, de um salário mínimo obrigatório, independentemente da conjuntura específica das empresas e das regiões, pode ser um passaporte para o desemprego. É uma espécie de embuste simpático. Se o nível fixado for realista, é desnecessário impô-lo ao mercado. Se irrealista, uma das três coisas acontece: os reajustes serão anulados pelo repasse aos preços, agravando-se a inflação; aumenta o desemprego; alternativamente, empresas e trabalhadores resvalam para a economia subterrânea, onde não há impostos nem garantias sociais. Além disso, a mistura de insumos passa a incluir mais máquinas e menos mão-de-obra. Em vez de benemerência, a intervenção governamental no mercado de trabalho torna-se uma crueldade. Empresas que poderiam fazer ajustes graduais e contínuos, ou negociar participação nos resultados, imobilizam-se à espera da definição legal. No intervalo, procuram precaver-se criando uma margem de proteção nos preços. De outro lado, quanto mais se procura alargar o elenco de garantias, menor se torna o número de garantidos. Hoje, 55% da força de trabalho é constituída por autônomos ou empregados na economia informal. E, paradoxalmente, segundo dados do Ministério do Trabalho, esses setores não indexados se deram melhor que os protegidos. Depois do Plano Real, a remuneração dos trabalhadores do setor formal aumentou apenas 14%, contra 24% na economia informal e 50% no caso dos autônomos. A intenção das leis de salário mínimo é proteger os elos mais fracos do mercado laboral. O resultado, tanto aqui como no mundo, é precisamente o oposto: dificulta-se a contratação dos segmentos mais fracos, ou seja, jovens, mulheres e deficientes físicos.
Essas coisas parecem óbvias, mas, como no poema de T. S. Eliot, ``human mind can not bear very much reality" (a mente humana não suporta a realidade em demasia). O resultado é uma torrente de leis salariais e garantias sociais, que nos tornam um país de baixos salários e alto custo de mão-de-obra. A experiência das últimas três décadas indica que as leis salariais só provocaram inflação e desemprego. São singularmente impotentes para melhorar o salário real.
No governo FHC parece haver um certo entendimento intelectual do problema, e o ministro Paulo Paiva quer desempenhar o papel de ministro do Emprego e não apenas do Trabalho. Mas o vezo tucano de meias medidas leva o governo a propor a livre negociação, mas negá-la em seguida, pelo engessamento legal do salário mínimo e a preservação de sua indexação. Isso indiretamente engessa outros níveis salariais que, por leis e contratos, são referenciados ao mínimo. Mas há algum progresso. Por meio do instituto de mediação, procura-se encorajar a negociação em vez das disputas judiciais. Sensatamente, determina-se a mensuração da produtividade por empresa. Medi-la por setores ou categorias (que incluem enorme variedade de empresas, de dimensões e níveis tecnológicos diferentes) tem o mesmo valor estatístico da temperatura média de um corpo, cuja cabeça está na geladeira e as nádegas no fogão. Mais tarde, talvez o governo tenha suficiente ousadia para propor as coisas corretas: abolir a reserva de mercado dos sindicatos, pela extinção da figura do sindicato único, eliminando-se essa toxina corporativista, o Imposto Sindical, que permite a sobrevivência do peleguismo patronal e laboral. Uma reforma fundamental exigiria, como nota o professor José Pastore, a modernização das relações capi tal/trabalho mediante reformas em três áreas: 1) organização sindical; 2) Justiça do Trabalho e 3) direitos sociais.
Segundo os jornais, o senador relator da medida provisória sobre a política salarial quer ampliar a indexação de um para três salários mínimos. É exatamente isso que foi feito no DL 2065/83, dos tempos da ditadura, com pesadas perdas para os trabalhadores, em vista da agravação da inflação. Será um presente de grego para os trabalhadores de baixa renda que, precisamente por serem de menor produtividade, são mais facilmente substituíveis por máquinas.
Votarei na medida provisória do governo, não porque ela seja correta, mas porque é um mal menor face às fórmulas de intervenção que abundam no Congresso, supostamente para proteger os pobres. Nas veias dos demagogos não corre o leite da ternura humana, e sim o vinagre da burrice ou o veneno da hipocrisia.

Texto Anterior: Passando em revista
Próximo Texto: Jatene obteve aval de FHC à volta do IPMF
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.