São Paulo, terça-feira, 1 de agosto de 1995
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'Há um grande ciúme cultural dos anos 60'

DA REPORTAGEM LOCAL; DA REVISTA DA FOLHA

Para o diretor do teatro Oficina, `o lado dionisíaco da cultura está sob o peso de uma contra-revolução'
A sequência da entrevista com o diretor Zé Celso Martinez Corrêa, iniciada à pág. 5-1:
Zé Celso - ``As Bacantes" chama a atenção, principalmente, dos artistas e das pessoas que gostam de teatro, porque é o momento de lutar para que o teatro brilhe mais do que nunca, porque é o lugar do encontro humano na época da cibernética, na época da Internet. Vai haver um momento em que as pessoas não vão suportar mais ficar dentro do computador e vai ser um grande acontecimento elas se reunirem para uma festa no teatro.
Uma festa ao vivo, em que aconteçam coisas ao vivo. É necessário esse contato com a terra e com os humanos, e é gostoso, e é insubstituível. Agora, isso é uma coisa que depende de ser cultivada. Se não é cultivada, se não é valorizada, se os que estão por cima, dominando na sua lógica de razão louca, acham que isso não tem valor para a vida, que é uma coisa arcaica, obscurantista...
Folha - Você vê algum problema em colar a estrutura original na sua realidade, na realidade política nacional, como você está fazendo? Isso pode ser entendido como algo que empobrece todas as implicações, digamos assim, espirituais, elevadoras, do texto.
Zé Celso - Uma peça escrita, ela passa séculos, milênios, e a cada vez é revivida com a energia presente, do momento. Ela só tem sentido se for... Eu faço Tirésias. Ela não conta a minha história. Eu me transcendo como pessoa, eu passo a aprender cada dia mais. A cada dia aquilo adquire um sentido novo, cada dia aparece um personagem novo, cada dia aparece alguma coisa que não estava percebida, porque você liga as antenas do presente. Quem está fazendo reinterpreta a partir de si mesmo, mas não do ponto de vista psicológico, do ponto de vista pessoal.
Mas esta peça, ela deve ter sido escrita porque deve ter havido na Grécia um determinado momento... Eurípedes deve ter sabido de algum sujeito que quis cortar o teatro. O Penteu histórico foi um rei assim. Então, você vai contar a história deste rei e você vai ver que este rei proibia que as coisas se transformassem em deus, se transformassem em Dionísio. Todo tartufo, todo fanático, ele sente uma atração enorme, ele odeia aquele ser oposto, mas é uma forma de... Se ele se entrega inteiramente àquele ódio... Aquilo vira amor.
Folha - Você quer dizer que neoliberal pode acabar rimando com bacanal?
Zé Celso - Não, neoliberal não, a democracia. Eu não sou neoliberal, não acredito em neoliberalismo. Eu sou democrata, eu acredito na democracia. Eu acredito que a democracia está ligada a muitos deuses, ao politeísmo. Dionísio é aquele que faz o papel de todos os deuses e que na realidade não é nenhum deus. Ele é teatro, ele é pura liturgia, puro teatro.
Folha - Não passa pela sua cabeça que a sua montagem venha a ser um pouco datada? Uma montagem de liberação, de revolução sexual, dos anos 60, e não dos anos 90?
Zé Celso - Não, ela não é de revolução sexual, ouviu?!
Folha - Estou perguntando.
Zé Celso - Não é isso. Não, ela é profundamente anos 60, porque os anos 60 foram uma década de grande poder das coisas ao vivo, de grande poder de cultura. Ela é profundamente anos 60. Aliás, ``anos 60" é um dos maiores preconceitos que se criaram, exatamente para poder cortar a cultura, para poder eliminar o lado dionisíaco da cultura. Os anos 70 e 80 criaram no mundo inteiro essa maldição. Isso é ``anos 60".
Mas eu acho que é profundamente anos 60 o presente, sempre. Eu não consigo ter a leitura que o ciúme de Hera faz dos anos 60, porque Hera não gozou nos anos 60. Hera não foi na orgia, Hera não sabe das coisas, ela ficou lá, através dos vidros, através dos óculos, dentro dos carros, dentro da televisão. Há um ciúme cultural muito grande dessa época, que é igual a 22, que é igual aos anos 20, é igual ao Renascimento, é igual ao período grego, e é igual agora.
Está tudo aí, está tudo aí. Pode não estar explícito, não estar manifesto, mas está tudo aí. Agora, evidente que tudo isso está sob o peso de uma contra-revolução, uma contra-revolução que está exatamente nas religiões messiânicas. Mas eu acho que dentro das religiões messiânicas vai haver uma renovação também. Eu acho que interessa muito, por exemplo... Eu gostaria muito de trabalhar nas ``Bacantes" com aquela ``perua de Deus", da Manchete. Eu acho que aquela mulher tem uma coisa dionisíaca muito forte (risos). Como a (deputada Maria da) Conceição Tavares...
O enterro do (piloto Ayrton) Senna foi uma coisa de Apolo, mas totalmente dionisíaca. Por onde passou aquele enterro, o enterro mudou todo o sentido da cidade. A cidade de São Paulo era outra, tinha outro significado. Está latente, existe isso. Agora, existem áreas que cultivam isso, áreas que querem secar. Mas as que querem secar são bem-vindas, porque elas são para ser molhadas também.
Folha - ``Mistério Gozozo", a sua última peça, está sendo processada por um padre, que é o padre da paróquia da sua mãe em Araraquara (risos). A religião, a necessidade do ritual religioso é crescente hoje...
Zé Celso - Então, por isso Dionísio é importante.
Folha - Mas o Brasil não é exatamente um país politeísta.
Zé Celso - Não?
Folha - Não é.
Zé Celso - No Brasil todo mundo é tudo. Eu sou católico, macumbeiro, messiânico, dionisíaco, eu sou tudo. Eu, como brasileiro, aprendi a ser tudo, aprendi a fazer tudo. Todas as religiões e nenhuma igreja, aprendi isso. Agora, evidentemente, diante da força que emergiu nos anos 60, existe toda uma disciplina para impedir que ela se manifeste. Quer dizer, a Igreja Católica tem um lado mais reacionário que se comporta ainda com a crença de uma Igreja Católica Apostólica Romana, que tivesse um centro, uma religião com um centro para teleguiar o resto.
Depois de Galileu, religião é uma coisa que não tem centro. Você sabe que não tem centro. Você é o seu próprio centro. Deus está em você e está em todos. Não tem um lugar que é aquele lugar que é o centro. Existem, evidentemente, as velhas e superadas tradições, que que se manifestam agora mais do que nunca, porque se vêem ameaçadas. Por outro lado, a própria Igreja Católica, vizinha da minha casa, faz reuniões de casais para eles cantarem, dançarem, para eles gritarem. Eles estão querendo, eles precisam, eles gritam. Então, você ouve aquilo e parece ensaio (risos).
Parece ensaio das ``Bacantes", às vezes é melhor que ensaio das ``Bacantes", porque depois de cantarem oito, nove horas, eles estão cantando bem, estão alucinados, na orgia das vozes, louvando a Deus. Dionísio é o deus do ritmo, o deus do corpo, deus ``gospel", e esse deus está aí. É o deus da vida presente. Está em todas as religiões e não está em nenhuma.

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