São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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Os segredos da visão

VICTOR KNOLL

Arte e Ilusão - Um Estudo da Psicologia da Representação Pictórica
E. H. Gombrich Tradução: Raul de Sá Barbosa Martins Fontes, 474 págs. R$ 37,50
Os movimentos artísticos que agitaram a primeira metade do século 20 relegaram para um segundo plano a questão da representação convincente, isto é, o problema da ilusão na arte. Enquanto cabe ao historiador reconhecer os elos estilísticos entre as obras e as épocas, e ao crítico a análise interna das obras, será a psicologia da visão que deverá dar conta do ilusionismo na arte. As obras de arte estão comprometidas com uma ``ardilosa mágica de transformação" da exterioridade sensível em representação plástica: quando o borrão de tinta se converte em forma identificável segundo o grau de proximidade de nosso olho com a tela. Tal é a postura de Gombrich. Os processos visuais, então, são assumidos como sendo os mesmos, seja quando nos voltamos para uma tela de Velázquez, seja quando examinamos um repolho no mercado.
Estética e psicologia se confundem, embora Gombrich procure ``isolar a discussão dos efeitos visuais da discussão das obras de arte" (pág. 6). Entretanto, são ``os truques de Velázquez", como nos diz, que ofertam uma ilusão e com ela a representação do mundo visível. De fato, Gombrich assume a postura platônica: a imitação é a cópia fiel de um original.
Quando voltamos o olhar para uma representação plástica, decididamente não o fazemos com a mesma disposição que olhamos um repolho. São atos distintos. Embora o processo fisiológico da visão seja o mesmo. Gombrich envereda pelo sensorialismo onde os objetos são indistintos: pouco importa se estamos olhando uma paisagem através de uma janela ou se estamos contemplando a representação plástica daquela paisagem sobre uma superfície plana. É certo que, na ``Introdução", Gombrich procura distinguir entre ``ver" e sensação visual enquanto processo óptico-fisiológico. Entretanto, o seu discurso se apóia na ``atitude" dos olhos -do órgão da visão.
A lição de Aristóteles acerca da imitação é desconhecida: ``a arte imita a natureza", isto é, a ``physis", o princípio gerador dos entes. Não se trata da ``res extensa" de Descartes. Imitar não é criar simulacros ou aparências ilusórias, mas refazer o caminho da ``physis". Mas, aqui, a posição é cortante. A conquista da ilusão pela arte, já na antiguidade, era referida à imitação no sentido platônico: uma cópia da cópia. Há uma separação nítida entre invenção e imitação.
Gombrich lida com a distinção entre ``conhecer" e ``ver". De um lado, as convenções e as informações sedimentadas pela tradição e, de outro, a apreensão da aparência enquanto luz e cor. O tratado de Gombrich é um reexame da afirmação que nenhum artista é capaz de ``pintar o que vê" e pôr de lado as convenções ou os conhecimentos mobilizados para interpretar ``o que vê". Já Plínio advertira que ``a mente é o verdadeiro instrumento da visão e da observação" (pág. 15). Ao mesmo tempo que aceita esta posição, acata as teses do empirismo lockiano. Assim, o exame da percepção põe-se como fundamento para a elaboração da história da arte. A representação na arte, com o passar do tempo, foi-se confundindo com a psicologia da percepção. Um psicologismo de teor sensorialista -diferente do empirismo de cunho lockiano. A reflexão não é parceira da sensação. Para Gombrich, a reflexão somente atua em um segundo momento.
Uma vez que a psicologia da visão se impôs, a linha da investigação se centrou na objetividade das normas da representação do mundo visível, as quais não se fundam em critérios artísticos, mas, antes, científicos. Os descobrimentos da óptica estão tão relacionados com a representação da luz quanto com a perspectiva.
De um lado, o artista procura ``efeitos visuais que criam a ilusão da semelhança"(pág. 309), de outro, a arte não está livre das convenções ou, como diz Constable, da ``maneira". As convenções constituem o estilo e permitem datar as obras, mediante os elementos constitutivos da tradição.
Assim, Gombrich oscila entre um fundamento antropológico e outro psicológico. O primeiro é subjugado pelo segundo. Para Gombrich, a história da arte encontra na psicologia o primeiro motor explicativo. Aliás, crê na possibilidade da explicação, ainda que a considere como provisória.
Entretanto, importa considerar que as pinturas instalam o imaginário. Eis a diferença: de um lado, temos a percepção das peças bovinas dependuradas em um frigorífico e, de outro, o ``Boi Esquartejado" (Museu do Louvre, Paris) pintado por Rembrandt. A apreensão de uma imagem que representa alguma coisa difere da apreensão desta mesma coisa. A percepção estética detém especificidade. A obra de arte é um objeto que se dá como imagem. Trata-se de um objeto dotado de valores imaginários (1). A propósito, a referência a Malraux é desconcertante: ``Acredito que André Malraux tenha chegado mais perto da verdade quando disse que todo ver é uma atividade intencional e que a intenção do artista é pintar" (pág. 347). Gombrich teria compreendido a afirmação de inspiração fenomenológica de Malraux?
Gombrich não questiona se percebemos uma pintura da mesma maneira que percebemos os objetos na exterioridade sensível. Impõe-se reconhecer a independência do imaginário. Trata-se de uma função específica da consciência. Sartre já o mostrou com suficiente clareza. Não ouvimos um quarteto de Mozart da mesma maneira como ouvimos a buzina de um caminhão. Não interrogamos uma estátua sobre as horas; se assim fosse, poderíamos dizer que há um vínculo entre arte e ilusão. Sabemos que a estátua é uma representação de uma divindade ou o símbolo da justiça.
A obra de arte, ao mesmo tempo, está comprometida com o espetáculo e tem o caráter de esfinge. Solicita decifração e não, apenas, identificação. A percepção no sentido estritamente psicológico identifica: tal objeto é um par de sapatos. ``Os Sapatos" de Van Gogh exige um outro olhar. Van Gogh não está nos iludindo. Imitar não é iludir. O observador sabe que está diante de uma imitação.
Para mostrar os desvios da visão, Gombrich toma ao pé da letra a metáfora de Alberti: ``Devemos considerar uma pintura como uma janela através da qual contemplamos o mundo visível". Toma também a indicação da ``vidraça transparente" de Leonardo como motivo de análises psicológicas de ilusões perceptuais, quando se trata notoriamente de um dispositivo técnico para favorecer a representação do mundo tridimensional sobre a superfície plana da tela em termos do lugar que o objeto ocupa.
Gombrich não salienta suficientemente o ``mundo do pintor", o conjunto de forças e relações históricas que atuam em sua visão, embora insista no poder dos esquemas e da tradição. Tendo em vista o conjunto de agentes do mundo renascentista, a perspectiva linear não pode ser reduzida à mera função ilusionista. Gombrich procura esclarecer a ``janela" de Alberti ou a ``vidraça transparente" de Leonardo, mobilizando uma psicologia de caráter sensorialista, como se a perspectiva linear fosse algo isolado. É bem verdade que enfatiza o papel das convenções. Mas, é certo, apenas em relação ao visual.
Por outro lado, a lição de Gombrich é definitiva: a pintura cria códigos visuais, de tal modo que o convívio com determinado universo plástico nos convence de que é a natureza que imita a arte. ``Como disse Oscar Wilde, não havia fog em Londres antes de Whistler pintá-lo" (pág. 346). A arte ensina a ver.
O artista não imita a natureza, mas a obra de outro artista. Manet (``Le Déjeuner sur l'Herbe") imita Rafael (``O Julgamento de Páris"). Assim se dá a inovação, tal é o motor da história da arte. ``A arte se torna, ela mesma, o instrumento do inovador para sondar a realidade" (pág. 345). Reynolds já houvera formulado com toda clareza semelhante concepção em seu opúsculo ``Discursos sobre a Arte": o pintor imita as obras de outros pintores. ``Malraux sabe que a arte nasce da arte, não da natureza" (pág. 25).
Gombrich mostra-nos que a pressão de novas exigências gera uma modificação gradual dos esquemas na criação da imagem. Para tanto, ``em todos os estilos, o artista se vale de um vocabulário de formas, e que é o conhecimento desse vocabulário, mais do que um conhecimento das coisas, que distingue o artista perito do inábil" (pág. 310).
Apesar do psicologismo, Gombrich aborda temas decisivos e os desenvolve analiticamente. Destacamos: o poder da interpretação do artista e do observador; a constituição do estilo; os limites derivados dos esquemas e do meio utilizado pelo artista para fazer a imagem; os liames entre forma e função na construção da imagem; as reflexões sobre o cubismo e a arte abstrata. ``Minha preocupação principal foi com a análise da produção da imagem -ou seja, com a maneira pela qual os artistas descobriram alguns desses segredos da visão `fazendo e comparando' "(pág. 30).
``Arte e Ilusão", dentro da volumosa obra de Gombrich, aloja-se entre ``The Story of Art" (``A História da Arte", Ed. Guanabara) e ``The Heritage of Apelles" (``A Herança de Apeles"). As teses centrais da primeira são aqui retomadas e a segunda, atendo-se ao Renascimento, tem neste livro seu ponto de partida.
NOTAS
1. ``...a obra de arte é um irreal. (...) Assim, o quadro deve ser concebido como uma coisa material visitada a cada momento (cada vez que o espectador assume a atitude imaginante) por um irreal que é precisamente o objeto pintado." (J.-P. Sartre, ``L'Imaginaire - Psychologie Phénoménologique de l'Imagination", Gallimard, Paris, 1940, págs. 239 e 240). É estranho que este livro não conste das obras sobre psicologia arroladas por Gombrich.

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