São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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O detetive amnésico

SILVANO SANTIAGO

O relato escapa uma vez mais ao ridículo quando apresenta o narrador como um detetive em causa própria. Um detetive amnésico que, decidido a investigar o próprio passado em busca da identidade perdida, descobre que o texto que produz pouco tem a ver com a memória dos seus, tem um pouco mais a ver com a memória do seu grupo étnico, o dos europeus pobres que partiram para a Argélia em busca de melhores dias. O texto tem, finalmente, tudo a ver com a angústia existencial e intelectual do ``pied noir" (colono francês) que é Camus, colocado contra a parede parisiense pela guerra na Argélia, onde velhas amizades se rompem e inocentes são assassinados e torturados.
Na busca da identidade, o escritor argelino rechaça os argumentos da esquerda francesa que o condenam. Quer livrar o pescoço das violentas acusações feitas pelos radicais da revista ``Temps Modernes". Por isso, Albert Camus escreve menos um relato autobiográfico e mais uma peça de defesa. Dois crimes lhe estão sendo imputados: o de deserção da família pobre na colônia francesa e o de omissão ou reacionarismo em relação à guerra da independência na Argélia.
No banco dos réus, o advogado-detetive (como o juiz-penitente em ``A Queda") traz à luz penosos segredos familiares e, ao trazê-los, desenha um discreto pano de fundo que anuncia as razões políticas pelas quais o antigo menino pobre não merece as palavras dos advogados de acusação. ``O Primeiro Homem" torna-se extraordinário no momento em que articula a vida familiar (a estória) com o desenvolvimento da questão colonial no norte da África e consequente luta pela liberação dos árabes (a história). A articulação entre estória e história é muitas vezes narrada num paradoxal tom lírico. Este recria a infância feliz no interior da infelicidade geral. O todo é dado como no palco de uma peça de Samuel Beckett. A grandiosidade das falas líricas contracena com a ferrugem dos corpos e do cenário.
A ação do livro se passa numa lata de lixo simbólica: a memória é esquecimento, o saber é ignorância e as sepulturas são o único sinal de vida. A originalidade maior de ``O Primeiro Homem" é paradoxal: como sublimar os detritos da lata de lixo da história e da família, a fim descrevê-los num francês que busca a pureza e a beleza do diamante? Na excepcionalidade do estilo artista está a salvação. Busca vã, como todas as buscas corretivas. Aliás, a natureza que a avó invoca ao querer justificar a própria avareza e o crescimento rápido do filho foi duplamente madrasta com Camus. Ela o obrigou a nos legar, pela morte prematura, um auto-retrato incompleto. É o leitor quem tem de afofar a ``capa" na cintura do menino-adulto para torná-lo original.
No paradoxo esboçado, desde que descodificada a metáfora do primeiro homem (isto é, o imigrante, sem pátria de origem e sem pátria no destino) (1), pode-se finalmente vislumbrar uma velada revelação no relato autobiográfico. Ao contrário do ``sanguinário" Jean Genet, autor da peça ``Les Paravents" (1961), Camus desejava para a Argélia uma solução pacífica, construtiva e feliz, que escapava aos desígnios radicais da direita e da esquerda. Nem paraquedistas franceses nem atentados à bomba pelos árabes. No exílio francês dos anos 50, como uma espécie de anacrônico Simon Bolivar, o ``pied noir" Albert Camus sonha com uma independência do tipo latino-americano para a colônia francesa. Na necessidade e na fraternidade, colonos europeus e árabes inventariam uma nação independente, multirracial, tolerante e feliz, como a cidade de Oran, passada a peste.
Depois da morte de Camus, no dia 3 de julho de 1962, é proclamada a independência da Argélia. Ahmed Ben Bella é o primeiro presidente da República.
NOTA
1. A longa passagem (págs. 174-175) é de leitura obrigatória
SILVIANO SANTIAGO é poeta, crítico literário e autor, entre outros, de ``Em Liberdade".

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