São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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A moral do jardim

FRANKLIN DE MATOS
CÂNDIDO OU O OTIMISMO

Voltaire Tradução: Marcos Araújo Bagno Nova Alexandria, 135 págs. R$ 13,50
O mais panfletário, o mais vertiginoso, o mais voltairiano dos contos filosóficos, escrito em 1758, depois que Voltaire vencera suas resistências quanto ao gênero e passara uns 20 anos calibrando-o pacientemente.
O ``Cândido" retoma a fórmula narrativa já usada em ``Micrômegas" e ``Zadig", que ainda se repetiria no ``Ingênuo" e que Voltaire descobrira tanto nas ``Cartas Persas", de Montesquieu, quanto na própria experiência de exilado na Inglaterra. A fórmula se baseia na instantânea transplantação do protagonista, geralmente jovem e ingênuo, para uma realidade completamente estranha que, entretanto, deve ser assimilada a qualquer custo (1). É assim que, na abertura do conto, o herói leva um pé no traseiro e é enxotado do castelo de Thunder-ten-tronckh por ter sido apanhado trocando carícias, às escondidas, com a Baronesinha Cunegundes. Após esta sequência -aliás, notoriamente uma paródia do pecado original e da queda-, seguem-se, num piscar de olhos, as espantosas peripécias que, do melhor dos mundos possíveis, na Vestfália, levam Cândido à Guerra dos Sete Anos, ao terremoto de Lisboa e a uma fantástica peregrinação pela América, de onde retorna à Europa, antes de ganhar, afinal, Constantinopla, em cujas proximidades resolve se estabelecer, a fim de cultivar o seu jardim.
Não se deve atribuir ao acaso, mas a uma lei fundamental do gênero, que o protagonista do conto filosófico seja portador de algum tipo de pureza ou inocência. De fato, apenas sobre um sujeito absolutamente ingênuo a demonstração própria do conto terá o rigor da experiência de laboratório -a inocência, aqui, é uma forma daquela ``tábula rasa" tão necessária à experimentação, segundo o século 18 (2). Mas, no caso do ``Cândido", de que demonstração e experiência se trata?
O tema do conto é uma das mais delicadas questões da filosofia do tempo: a origem do mal. Em fins do século 17, Pierre Bayle sustentara, a partir da constatação da existência do mal físico e moral, a impossibilidade de se afirmar o que quer que fosse sobre a existência de Deus. Para lidar com a questão, Leibniz inventou o termo Teodicéia, que, ao pé da letra, significa ``justiça de Deus" e, filosoficamente, designa a justificação da bondade divina contra os argumentos céticos e agnósticos. Simplificando, pode-se dizer que, para Leibniz, a perfeição de Deus o leva a escolher, no momento da criação, o melhor dos mundos possíveis e, assim, aquilo que parece mal do ponto de vista da parte, não o é na perspectiva da totalidade.
No ``Cândido", o otimismo leibniziano encarna-se no preceptor Pangloss, que passa o tempo todo teimando em dizer que tudo está bem no melhor dos mundos possíveis. Para contestá-lo, Voltaire se compraz (já houve quem achasse o Marquês de Sade uma espécie de sobrinho de Voltaire...) em criar o vertiginoso encadeamento de calamidades que leva de roldão o herói, Cunegundes, o melhor dos castelos, o pobre Pangloss, o mundo inteiro. Ao chegar à metade da história, o leitor -decididamente sem fôlego- já não pode ter a menor dúvida: o mal existe inegavelmente, pois os homens são ``mentirosos, velhacos, pérfidos, ingratos, bandidos, fracos, levianos, invejosos, gulosos, beberrões, avarentos, ambiciosos, sanguinários, caluniadores, debochados, fanáticos, hipócritas e tolos". E o melhor dos mundos possíveis, só se for o Eldorado que, como todos sabem, não existe.
Já se disse que, para julgar as sutilezas da metafísica, Voltaire costuma recorrer a uma filosofia do ``common sense". Se assim for, será preciso acrescentar que, no caso do ``Cândido", esse recurso implica a rejeição do romance de aventuras, cuja estrutura é insistentemente parodiada pelo conto. De fato, a exemplo desse tipo de romance, o ``Cândido" relata a história de dois jovens enamorados, cujo amor não pode a princípio realizar-se devido a algum impedimento, e que lutam contra múltiplos obstáculos antes de se juntarem afinal pelos laços do matrimônio. Como bem observou Mikhail Bakhtine (3), aquilo que distingue o romance de aventuras é o uso específico que aqui se faz do tempo. Quer dizer: a narrativa é construída no hiato compreendido entre o encontro dos enamorados e sua união final, mas trata-se de um hiato extratemporal entre dois momentos de um tempo biográfico. Extratemporal, porque o tempo passa impunemente sobre os heróis, não deixando traço algum em suas vidas ou caracteres: assim, o amor de ambos não muda em nada, não diminui, não aumenta, não se corrompe, não se aperfeiçoa. É desnecessário advertir o leitor para a crueldade voltairiana, que cuidou de calcular (é ainda Bakthtine quem o diz) que efeito poderia ter sobre os heróis uma boa dose de aventuras romanescas. E assim, no final da história, o pobre Cândido recua, ``tomado de horror", ao deparar-se com aquilo em que se tornara a outrora corada, fresca, roliça e apetitosa Cunegundes. Não custa lembrar ainda a perfeita adequação existente entre a forma e o conteúdo do ``Cândido", ou seja: a crítica do otimismo leibniziano é feita mediante a paródia do romance barroco de aventuras que, segundo pensa o século 18, é fabuloso, quimérico, inverossímil, a exemplo de toda a metafísica.
Entretanto, apesar daquilo que sugere o subtítulo do conto, o ``Cândido" de Voltaire não se limita a recusar o otimismo e a devastar o melhor dos mundos. Conforme bem notou Jacques van den Heuvel, o conto é simetricamente dividido em dois momentos, separados pelo ideal do Eldorado, que se situa exatamente no meio da história. O primeiro momento começa com a paródia da queda e termina na casual e milagrosa chegada de Cândido e Cacambo ao Eldorado: seu objetivo, como já vimos, é provar a existência do mal e, por isso, é marcado pela contínua fuga do protagonista, pelo clima do ``salve-se quem puder" (fórmula então obsessivamente usada na correspondência de Voltaire). O segundo momento principia com a partida do herói e acaba no jardim da Propôntida: visto que o mal existe, que o mundo no qual vivemos é este e não o melhor dos possíveis, trata-se agora de saber como se pode viver nele, quer dizer, trata-se de formular a sabedoria que nos resta.
Não por acaso, assim, duas coisas se tornam fundamentais no conto: de um lado, Cândido já não passa o tempo todo a fugir, tendo agora um rumo preciso, o de Veneza, onde pensa reencontrar Cunegundes; de outro, o alvo preferencial de Voltaire já não é Leibniz, mas o maniqueísta Martinho, cuja filosofia é a contrapartida do otimismo de Pangloss e sustenta, em resumo, que tão mal andam as coisas deste mundo que certamente Deus deve ter dado o governo delas a algum malfeitor. Deste modo, a sabedoria final do conto recusa tanto Pangloss quanto Martinho. Das paixões humanas decorre o mal, mas que seria do homem, se não pudesse contar com elas? Se as paixões mergulham na inquietude, esquivar-se a elas pode custar uma outra doença, igualmente temida no século 18: o tédio. Assim, o ``Cândido" prefere combinar aquilo que dizem um dervixe e um ancião turcos, a cujas portas vão bater o herói e seus amigos. O dervixe diz: não se deve perder tempo com metafísica, é preciso se calar frente ao mal deste mundo. E o ancião (que, por sinal, cultiva os mais refinados prazeres da mesa): o trabalho afasta da gente três grandes males, o tédio, o vício, a carência. E Cândido, por sua vez, conclui: é preciso cultivar nosso jardim, numa fórmula que provocou algumas controvérsias entre os estudiosos de Voltaire. Para simplificar, digamos que ela propõe uma regeneração do indivíduo mediante a natureza e o trabalho.
À sua maneira, portanto, o ``Cândido" acaba por insistir numa idéia muito repisada nos contos de Voltaire: segundo ela, se nem tudo está bem no mundo, tudo é, entretanto, passável. Num relato em forma de parábola, ``Le Monde Comme Il Va, Vision de Babouc Écrite par Lui-même" (1746), este sentimento se exprimiu da maneira mais transparente. Um anjo atribui a Babouc a delicada missão de percorrer a capital da Pérsia, observar seus costumes e pronunciar a sentença que faria a cidade ser poupada ou arrasada pelos gênios que presidem aos impérios do mundo. Babouc conhece, assim, a miséria e a grandeza do lugar, seus vícios e faltas, mas também o seu refinamento e as suas virtudes. E, então, tem a idéia de pedir ao melhor fundidor do reino uma estatueta composta dos mais vis e dos mais preciosos metais. De posse dela, apresenta-se ao anjo e lhe pergunta: você quebraria esta linda estatueta apenas porque nem tudo nela é ouro e diamante?
Quanto à tradução, se tampouco nela tudo é metal precioso, o leitor a percorre entretanto sem maiores dificuldades, topando aqui e ali com uma ou outra coisa discutível. Indiscutível, porém, é a barbeiragem do final, quando o tradutor resolveu podar a célebre metáfora epicurista do jardim e, desastradamente, traduziu jardin por horta.
NOTAS
1. É o que afirma Jacques van den Heuvel em ``Voltaire Dans Ses Contes", Paris, Armand Colin, 1967, pág. 27.
2. A observação é de Béatrice Didier, na sua apresentação a ``Les Infortunes de la Vertu", de Sade, Paris, Gallimard-Folio, 1970.
3. In ``Esthétique et Théorie du Roman", Paris, Gallimard, 1979.

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