São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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Arqueologia do sujeito

LUIS CLÁUDIO FIGUEIREDO
DESEJO E PRAZER NA IDADE MODERNA

Luiz Roberto Monzani Editora Unicamp, 234 págs. R$ 22,00
Muitas vertentes já foram exploradas com o propósito de investigar as origens e fontes do pensamento freudiano. Alguns comentadores procuraram identificar os modelos epistemológicos que operavam na produção da psicanálise. Outros se dedicaram a rastrear as fontes conceituais de Freud. Neste capítulo, naturalmente, situam-se alguns estudos famosos sobre a história da noção de ``inconsciente", em particular, no bojo da tradição romântica. Outros, ainda, desenvolveram pesquisas sobre as origens socioculturais da psicanálise, enfocando a gênese e a dinâmica da subjetividade moderna. Neste capítulo encontram-se alguns dos mais notáveis trabalhos sobre a modernidade vienense e sobre as perspectivas que aí se abriam para repensar as questões da subjetividade.
A arqueologia do sujeito psicanalítico que nos é oferecida por Luiz Roberto Monzani não se enquadra em nenhuma destas vertentes e bastava a originalidade de seu projeto para tornar a obra, recentemente publicada, merecedora de nossas atenções. Mas afinal, do que se trata? Trata-se de elucidar o processo de montagem dos fundamentos da vida passional tal como pensados na Idade Moderna, de forma a identificar alguns momentos decisivos na constituição desta subjetividade que veio a encontrar na Psicanálise sua cabal expressão teórica.
A exposição se inicia nos colocando em contato com a ``querela do luxo" que, nos séculos 17 e 18, opunha os que atacavam o consumo supérfluo a partir de uma idealização da natureza (``a natureza por si mesma simples e moderada") aos que defendiam o luxo a partir de uma compreensão absolutamente nova da natureza humana. Nesta nova compreensão há, ``naturalmente", algo profundamente antinatural na natureza humana: uma indeterminação das necessidades, uma desmesura dos apetites, uma insaciabilidade dos desejos que faz com que a sequência biológica ``necessidade - desejo - satisfação", característica dos animais, seja profundamente transformada no homem, dando lugar à sequência ``desejo - necessidade indeterminada - elaboração imaginária - satisfação fugaz - desejo". Como se pode perceber, o novo ingrediente -a ``elaboração imaginária"- faz aqui toda a diferença: há no homem, segundo esta nova antropologia, uma capacidade ilimitada de antecipar o gozo, ou seja, uma ausência de limites à fantasia, e é daí que podem emergir incessantemente os novos objetos de prazer que tornam qualquer satisfação já obtida mesquinha e temporária.
Não é difícil, como bem observa Monzani, estabelecer uma correlação entre esta nova antropologia -a do homem desejante- e as novas condições da vida social. A formação da economia capitalista e de uma classe burguesa permitem entender a defesa do luxo como a defesa do ``consumo produtivo": as proliferações dos desejos e dos bens será, mais do que uma possibilidade legitimada pela nova antropologia, uma necessidade do regime de produção. Talvez, contudo, e este é um aspecto que Monzani não considera, possam-se encontrar outras raízes socioculturais, mas não econômicas, para a emergência de um desejo insaciável: a perda dos lugares naturais para os indivíduos, gerada pela acentuação das tendências individualistas na vida social do Ocidente, criou, ao que tudo indica, um desejo ilimitado e desesperado por reconhecimento e identidade.
Lembremo-nos, de passagem, que, em termos hegelianos, é porque o desejo humano é ``desejo de desejo", luta por reconhecimento, que é infinito. As elaborações do mito de d. Juan, que vão de Tirso de la Molina, no início do século 17, a Mozart e Da Ponte, no final do 18, dão testemunho, exatamente, de uma subjetividade que apenas na conquista e na sedução compulsiva encontra saída a este desejo desenfreado. Creio que, embora não faça parte da ``querela do luxo", a análise da fascinação pela figura de d. Juan nos poderia levar ainda mais longe no reconhecimento dos ingredientes da nova antropologia: já não estaríamos confinados à apologia do desejo pela via do ``consumo produtivo", mas nos depararíamos com a grande questão do consumo conspícuo, ou seja, do desejo de reconhecimento suficientemente forte para sustentar qualquer desperdício.
Nos capítulos seguintes, mediante a exegese de alguns pensadores exemplares da época, Monzani vai nos conduzindo pelos caminhos filosóficos em que se foram montando estes novos fundamentos da vida passional. No capítulo intitulado ``Desejo", vai buscar em Hobbes e em La Rochefoucauld os elementos que marcam a entrada do ``desejo" como a determinação central da subjetividade. Em Hobbes, os desejos, fundamentalmente o desejo de conservação da vida, são descobertos como o motor permanente, incessante, ilimitado, diverso e multifacetado de todas as manifestações da existência individual. O apetite voraz, o egoísmo em suas formas brutas ou mitigadas vêm a ocupar o miolo dos sujeitos, dando-lhes impulso, direção e forma. Em La Rochefoucauld acentua-se a natureza dissimulada do egoísmo. Egoísmo e vaidade seriam sempre os verdadeiros móveis das ações humanas, mas estariam sempre, ou quase, encobertos pelos véus da hipocrisia, do engano e da auto-ilusão.
Daí a necessidade de uma estratégia de desmascaramento. Impossível não aproximar estes autores de Freud e é o que Monzani faz em duas ocasiões. Ao fim deste capítulo o leitor tomou pleno conhecimento da primeira grande mudança conceitual: da série ``amor - desejo - prazer" que regia a antropologia clássica e que refletia tão bem a boa ordenação de um universo hierarquizado em que Bem e Mal pareciam existir objetivamente e comandar as ações humanas, passamos, com Hobbes e La Rochefoucauld, à série ``desejo - prazer - amor", em que o ``bem" que se ama já não desfruta de qualquer independência diante do sujeito desejante. São os desejos subjetivos que dão a certos objetos as qualidades boas que lhes reconhecemos. São os desejos que constituem seus bens, seus objetos de fruição.
No capítulo seguinte, ``Inquietude", os autores contemplados são Malebranche e Locke. Na análise das noções de ``inquiétude" e ``uneasiness", Monzani acompanha as tentativas da época na busca de uma melhor compreensão da dinâmica do desejo naquilo que tem de especificamente humano, ou seja, como desejo poliforme e insensato. Desejo que se antecipa ao conhecimento, que antecede a representação do desejável, que descarta enfadado e frustrado todos os objetos que encontra e consome. Esta procura de esclarecimento do desejo acaba nos levando para algo que o antecede, como por exemplo, a insatisfação (``uneasiness") produzida pela ausência de um bem; ela seria, mais do que a antevisão de um bem ausente, a verdadeira mola propulsora da vontade e da ação. No entanto, nem a inquietude nem o mal-estar dão conta da própria gênese do desejo.
É isso que, segundo Monzani, foi a grande contribuição de Condillac. No último capítulo, ``Prazer", assistimos à derradeira transformação conceitual que assenta os fundamentos da vida passional da modernidade. No lugar da série, já moderna, ``desejo - prazer - amor", a partir daqui temos ``prazer - desejo - amor". Trata-se, em primeiro lugar, de fazer tanto o mundo subjetivo como seus objetos repousarem no ``princípio do prazer". É da satisfação das necessidades -das experiências de prazer-, alternadas com experiências de desprazer -em que as satisfações são impedidas ou adiadas-, que nascem os desejos.

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