São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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'Traviata' volta à prostituição com Muti

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DO ENVIADO ESPECIAL A SALZBURGO

``Zumpapá! zumpapá!" Desse modo o maestro italiano Riccardo Muti sintetizou sexta-feira em Salzburgo o mau uso da ópera ``La Traviata", do compositor italiano Giuseppe Verdi (1813-1901).
Muti estreou sábado no Festival de Salzburgo uma montagem que se pretende renovadora da mais surrada das óperas. Trabalhou durante o último mês com o encenador espanhol Lluis Pasqual, o cenógrafo italiano Luciano Damiani e a soprano húngara Andrea Rost para reconstituir o componente inquietante que o drama musical encerrava quando da estréia, no teatro La Fenice de Veneza, em 1853.
``Essa ópera ficou conhecida como a do `zumpapá, zumpapá'. Culpa dos maus maestros. Verdi mostra profundidade na partitura. Sou um mau maestro que, pelo menos, tenta evitar o `zumpapá'."
Muti dirige o teatro Scala de Milão e foi convidado pelo diretor artístico do festival, Gérard Mortier, para comandar uma das raras ``Traviatas" no reduto de Mozart. Mortier chamou também Pasqual, 44, coordenador do festival de teatro da Bienal de Veneza e encenador na Ópera Nacional de Madri.
Mortier firmou a linha polêmica: Verdi foi um revolucionário assimilado pelo sistema do bel canto.
Pasqual: ``São 150 anos de pó. Se livros e catedrais são cobertas por ele, por que não ópera? Precisamos nos dar conta de que Verdi pôs uma puta no palco. Violetta, a puta, foi exibida na estréia com trajes contemporâneos ao do público. O choque foi enorme".
Muti e Pasqual conversaram com a Folha sobre suas visões estéticas. Estavam de bom humor, aproveitando uma folga nos tumultuados ensaios .
Na última terça-feira, foi anunciado que Andrea, que faz Violetta, estaria sofrendo de uma inflamação na garganta e teria de ser substituída pela ``doppione" Victoria Luchenizze (``doppione" é aquela cantora que treina o papel da diva e torce para que esta quebre o pescoço).
Houve boatos nos jornais alemães segundo os quais Muti, Pasquall e Andrea teriam trocado tapas no último ensaio, na mesma terça-feira, e a soprano teria se retirado sob protesto.
Muti, famoso por seu temperamento explosivo, nega tudo: ``Não sei que necessidade vocês, jornalistas, têm de inventar lorotas. Não conseguem acreditar que gente famosa fica doente! Outro dia eu adoeci ao mesmo tempo que um músico da minha orquestra. Quando nos recuperamos e voltamos, comentei com ele: sabe qual é a nossa diferença? Se você adoece, todos acreditam em você. Se eu adoeço, sou um mentiroso!"
Todo o discurso de Muti foi para dizer que Andrea realmente estava mal e se mordia por não cantar na estréia -o que acabou não acontecendo. ``E mais! A guerra está a 300 quilômetros daqui, na Bósnia, mas a paz é possível, mesmo se tratando de mim", brincou o maestro.
Pasqual promete uma ``Traviata" leve, lírica, própria para uma soprano coloratura. ``Ela tem sido mostrada de uma maneira muito fútil ou excessivamente dramática e aqui o fantasma de Maria Callas paira ameaçador", comenta. ``Quero encenar Violetta como protagonista de uma dança da morte. Ela baila em direção à morte. Verdi dramatiza a situação e mostra a resistência de Violetta nesse gesto. Quer viver, mas é tarde demais. A sociedade, representada pelo público, a assassinou."
Muti contextualiza: ``Verdi pôs em cena um problema pessoal. Vivia com a cantora Giuseppina Streponi e a sociedade o condenava. Verdi responde com uma ópera acusatória".
O maestro diz explorar os recitativos e árias lentas, deixando os ``highlights" menos evidentes.
``É a mais complexa ópera verdiana. Há toda uma tradição interpretativa a cobri-la. Mas fico com a definição de Furtwaenglero: `Tradição é a má lembrança do último mau intérprete'. A `Traviata' beira o folclórico. Então vamos levar sutileza ao ritmo e intensificar cada compasso. Mesmo um pizzicato tem que ser o mais bonito do mundo. Se você fizer a mesma coisa durante 32 compassos, pode estar certo: a platéia vai roncar."
A volta da transviada (``traviata", em italiano) à prostituição poderá ser conferida pelo público amanhã e nos próximos dias 12, 18, 22, 25, 26 e 29.
Nem maestro nem encenador esperam um choque. `` `Traviata' é um objeto de colecionador que um dia teve impacto e assim deve ser vista", diz Pasqual. Os ingressos esgotaram há dois meses.

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