São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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Divine Brown oferece terapia familiar

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Se pudesse escrever uma carta para mim mesmo, quando ainda vivia num quarto de 17 metros quadrados, na Sandhmansgatan, em Estocolmo, a principal notícia que me enviaria seria esta: o inverno pipocou.
Nunca fomos de invernos rigorosos e era bom lembrar disso na Suécia. Mas nessas lembranças havia espaço para vinho tinto, xícaras fumegantes de chocolate e até um velho suéter.
O inverno de 95 passou sem que nos déssemos conta. Só as paineiras vermelhas, importadas por Burle Marx, levaram a sério a estação. Deram suas flores com regularidade, independentemente dos termômetros.
Mais estranhas que as mudanças na natureza são as viradas no comportamento. Jamais poderia imaginar que Maria se tornasse o tema de um debate tão amplo no Brasil. Sobretudo no inverno.
No verão, fala-se mais dela. Principalmente o verão da lata, quando toneladas foram lançadas ao mar e acabaram dando nas praias do Rio. Ali não se discutia -ria-se muito entre um e outro baseado.
Nesse inverno, cientistas tomaram a palavra. Pode ou não pode usar em pacientes com câncer? Cura glaucoma? Os espermatozóides ficam mesmo menores? A memória desaparece para sempre ou só durante certo tempo?
Com tanto espaço na mídia, a mãe de um amigo acabou querendo conhecer Maria. Ele estava com amigos em casa. Ela fumou uma vez. E, ao contrário de Clinton, tragou. De dois em dois minutos, interrompia a conversação com a frase ``não estou sentindo nada". O amigo, com paciência, tentava manter a conversação e acalmá-la: ``Tudo bem, mamãe, não se preocupe".
Chegou um momento em que, não suportando mais as interrupções da mãe, convidou o grupo para ir a um bar. Desceram quatro andares de escada e, quando chegaram à rua, lá estava a velha na janela, aos gritos: ``Não estou sentindo nada. Não estou sentindo nada".
Em meio a tantos debates científicos sobre Maria, gostaria de deixar registrada nessa carta ao passado uma história que aconteceu no morro Dona Marta. Um homem baixo e um homem alto e magro foram comprar alguns gramas. Resolveram experimentar e era uma "sinsemilla".
O homem alto tragou fundo e acabou caindo de joelhos, o baixo tentando soerguê-lo.
Ao verem a cena meio patética, as pessoas que estavam em torno não hesitaram:
- Quero cem.
- Duzentas pra mim.
- Levo tudo o que houver.
A empolgação da bolsa de valores instalou-se subitamente nas vielas do morro. Os homens que tomavam cerveja numa birosca acabaram se incomodando com o clima fervilhante de negócios e se mudaram dali. Para beber em paz.
Mas a notícia mais delicada nessa carta ao passado é sobre Divine Brown, a jovem prostituta presa com o ator Hugh Grant, em Los Angeles.
Ali, em Estocolmo, num corredor recendendo a curry, como imaginar que as coisas se passariam assim? O escândalo ainda é previsível, uma vez que a polícia tem a mania pouco civilizada de olhar para dentro dos carros, no escuro e nas ruas desertas.
Cada povo leva sua cruz. A dos norte-americanos é a do puritanismo. Fizeram toda aquela encenação, Grant pediu desculpas e pronto. O problema deles no fim de século não é mais se deixar beijar por uma prostituta na esquina, mas sim ter o grande assessor de comunicação que lhe indique precisamente o que falar nos talk-shows.
Mas e o nosso, aqui nesses trópicos em que o inverno é tão ameno que nos sentimos tentados a trair o próprio verão? Divine Brown aparece num anúncio da Valisère, aconselhando as brasileiras a usar uma precisa marca de lingerie, pois assim os maridos não buscarão emoção fora de casa.
As mulheres que acreditam nisso costumam ser as menos emocionantes. Os maridos certamente vão achar uma nova razão para pular a cerca. Divine Brown acabará fazendo anúncio de batom. E, se a temperatura continuar assim, futuro garantido mesmo seria o da Kibon, com um produto novo, crocante, delicioso. No entanto, as coisas são mais complicadas.
"O que é que está acontecendo?" Esta frase de Hugh Grant no momento em que a polícia chegou talvez seja emblemática no fim do século. Antigamente, seria apenas: "Foi bom pra você, meu bem?".
Divine Brown sabe, no fundo, que, depois da campanha da Valisère, os homens irão atrás de mulheres sem calcinha. E daí? Ela se vê diante de uma chance histórica de revolucionar sua velha profissão. Ao invés de atenção individual, terapia familiar. Os velhos núcleos empedernidos pela barriga, celulite, lumbago, terríveis roncos noturnos ganham uma chance mínima de sobrevivência. A transfusão dos segredos das esquinas de Los Angeles e de todas as esquinas do mundo passa a ser a última esperança para um paciente combalido.
Mas como realizar uma cruzada dessa dimensão universal sem se tornar uma mulher respeitável, uma velha senhora com um pool de empresas, lançando livros, games com o título "Engole ou Cospe", processos na justiça por tentativa de criar monopólios?
A família fez de mim uma puta, vou fazer da família um grande puteiro. A diferença entre a personagem e Durrenmat é que Divine Brown joga aberto, desde o princípio. Sempre esteve na mesma esquina, no mesmo "blow job". Foi presa várias vezes, incompreendida pela crítica. Finalmente, na última prisão, o sucesso de bilheteria. É assim em Los Angeles.
Qual será agora sua preocupação, depois de ter se tornado uma mulher quase rica? Buscar menininhos na esquina da prostituição masculina? Ou ficar em casa inquieta, vestida com sua Valisère, esperando seu homem, que saiu há várias horas, apenas para comprar cigarros?
Se contasse essas novidades para mim mesmo em Estocolmo, diria que eram ruminações de inverno, coisas de Maria. Mas aqui no Jardim Botânico sei que não há inverno e a própria Maria foi tragada pelas lupas, bisturis e ampulhetas da razão.

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