São Paulo, terça-feira, 8 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Carmen foi do getulismo ao capitalismo

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Eu estava diante da TV quando Carmen Miranda caiu. Eu era garoto e morava na Flórida. Era o show de Jimmy Durante. Muitos anos depois, eu revi a cena (ontem) no filme "Bananas is My Business", que estreou em São Paulo e Rio. E ouvi o diálogo entre ela e Jimmy Durante. Carmen cai: "Oh... eu não consigo respirar"... Jimmy: "Não se preocupe, eu digo as falas". Carmen se recompõe pálida e sai dançando pela porta do palco. Suas mãos voando em círculos, sorrindo e rodando e saia brilhante, ela vai sumindo pela porta que Jimmy fecha com rosto tenso. E sai da vida.
O filme é precioso para nós que queremos entrar no primeiro mundo. Helena Solberg e David Meyer num trabalho de pesquisa e lirismo, foram além do mero documentário e redesenharam não só a ascensão e queda de Carmen Miranda mas também um retrato de nossa eterna fragilidade. É preciso assistir a "Bananas is My Business" para ver quem somos nós. Ali, no tempo em volta de Carmen estava se gestando o Brasil de hoje. Como fica nítida nossa precariedade nos filmes antigos... Como era e é frágil o Brasil, tão desamparado diante dos desejos estrangeiros, tão mal filmado no passado, tão mal preservado. Só existem oito minutos de cenas de Carmen filmadas no país. Não só os filmes eram mal preservados. Vemos mais que isso nas dolorosíssimas imagens precárias do nosso passado: é que a realidade era também trêmula e mal preservada, que tudo era ingênuo e pobre, que éramos atores "aquém" de nossa época. Vemos que aquele não era ainda nosso "presente", que no passado estávamos no "passado". No passado, já éramos "de época". Eu olho os fragmentos de imagens antigas com a desesperada atenção de tentar entender um mistério do nosso destino. Copacabana, o Bando da Lua, as pobres camisas de malandro, os microfones art déco, a era do rádio, a reprodução tênue do som e da imagem, os desenhos de J. Carlos, os bigodinhos à Clark Gable, os chapéus, Getúlio, tudo com as três dimensões de um quadro acadêmico vazio. O que havia de errado conosco? Vemos nos filmes americanos que eles, mesmo no passado, estavam em um "presente". As geladeiras eram brancas, os telefones pretos, usavam chapéus, mas era a mesma América de hoje. Os americanos sempre estiveram de acordo com sua época. Nós, não. Nas imagens do Brasil passado, parece que estávamos sempre atrasados para o progresso, sempre uma mímica do que não éramos nós. Nos filmes antigos passa a sensação de que todos morreram sem conhecer os seus melhores dias. Mesmo os filmes de ficção são documentários de nossas carências, ali nos rostos dos atores. Pobre Copacabana, pobres cariocas desamparados diante do mundo.
Aí, surgiu a Carmen Miranda com seu riso, seu jeito. Ela era um futuro. Seus gestos já eram uma paródia do mundo em volta que ninguém percebia. Ela era mais inteligente que todos. Acho que ela intuiu a cultura de massas, como diria o Caetano muitos anos depois, ela, que já apontava na direção do que seria o tropicalismo. Carmen ilumina seu tempo e, com sua luz, podemos ver também as pistas de algo de nosso destino que se perdeu depois, podemos ver as pegadas dos passos que ainda iríamos dar. Havia ali o mistério de uma brasilidade clássica que foi sumindo e desapareceu nos anos setenta.
Milagre brasileiro... Nesta época que vivemos hoje (como seremos vistos daqui a 50 anos? teremos o tremor daqueles fraquinhos de chapéu?) vemos este filme como um elo perdido. Está tudo ali. O "hoje" está ali. Americanos e franceses não sentem esta falta. Por sinal, as únicas imagens que temos em cores do Brasil dos anos 40 foram filmadas por Orson Welles. É nosso único Carnaval em cores, quando o "Mágico de Oz" e "E o Vento Levou" são de 1939. Só nos vemos pelos olhos dos outros.
Só os filmes americanos registraram a genialidade de Carmen. Neles, temos o Brasil por tabela, no perfeito "technicolor" dos 40.
Carmen chega à Broadway triunfante, na beleza de seus gestos perfeitos, sua voz desenhando uma alegria matematicamente exata. Carmen usava o corpo como se ela fosse uma "outra" que cantasse. Carmen teve a idéia do travestimento, a idéia de ser uma fantasia de si mesma, de ser uma outra, um "eu" sem centro. Carmen inventa a alegoria moderna viva e isto dá a ela a Semana de 22 e prefigura a indeterminação de hoje. Daí seu imenso fascínio atualíssimo. Daí, os travestis adorarem-na.
E o filme de Helena Solberg e David Meyers vai virando um genial documentário sobre nossa situação colonial. É o documentário de uma antropofagia de Carmen feita pelos americanos, de baixo para cima. É Hollywood sugando a luz dos trópicos como um antídoto anti-recessão de 30. Literalmente, jornais disseram: Carmen Miranda anunciou o fim da Depressão!
Mas daqui, das nossas salas escuras, o filme é o retrato cruel de seu rosto mudando.
Logo depois do sucesso inicial, quando ela deslumbra pela esfuziante perfeição de sua alegria, começa a luta intercultural entre a fragilidade latina e o prático senso de mercado dos ianques. Carmen chega (e nós, junto com ela) com a ingênua crença de que estava conquistando a América. Apenas, Rockfeller tinha criado o Office for the Co-ordination of Interamerican Affairs. A única finalidade de toda aquela "boa vizinhança" era que os latinos não se aliassem a Hitler e que os produtos americanos tivessem mercado aqui, caso algo acontecesse com a Europa.
Tivemos depois as Operações Pan-Americanas, a Aliança para o Progresso e temos hoje o grande cassino charmoso do neoliberalismo. E, como sempre, somos atraídos com a doce esperança de que nos aceitem por nossos "belos olhos". Sempre achamos que vamos pertencer ao baile do primeiro mundo mas, na hora H, fazemos o papel de empregada doméstica, garçon ou prostituta. Sonia Braga foi dublada como porto-riquenha pelos gringos que compraram meu filme "Eu te Amo". Rita Moreno teve seu último papel fazendo um "blow job" em Jack Nickolson, em "Carnal Knowledge".
Carmen partiu encantada em ser uma utopia cordial e, aos poucos, foi sendo esmagada entre dois nacionalismos: o nosso, racista e invejoso, e o deles, racista e excludente.
Quando Carmen volta aqui, no fim de 1940, é recebida com terrível silêncio e ódio pela platéia aristocrática (sic) do cassino da Urca. (Minhas tias diziam: "Ela é uma chapeleirazinha da Travessa do Comércio"). Nunca mais se recuperou. Aqui, samba era coisa de "morro". Rejeitaram-na, numa antevisão do racismo "wasp" que iria pintar depois, quando Bing Crosby a imitaria grotescamente (como Mickey Rooney e Jerry Lewis) cantando: "Take back your samba". A necessidade dos mercados latinos estava assegurada, já podiam abrir mão dela. Os EUA são o país mais nacionalista do mundo, não se enganem. Carmen Miranda, a sexy alegria perfeita, foi sendo transformada pelos produtores num virago unissex, numa caricatura sinistra dela mesma. Foi rejeitada aqui como "americanizada" e deformada no Norte como uma reles "chicana" cômica.
Este filme não podia vir em hora melhor. Estamos na era da "boa vizinhança" do mercado global. Temos de tomar cuidado para não sermos cuspidos fora depois do almoço. Afinal, bananas continuam sendo nosso "business".
Carmen saiu do getulismo e caiu no capitalismo. Exatamente como nós. Morreremos deste trauma?

Texto Anterior: Revista diz que Jackson mente sobre processo
Próximo Texto: Reciclagem prioriza valores ecológicos e sociais
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.