São Paulo, terça-feira, 8 de agosto de 1995
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"A Globo é a minha nova Atlântida"

DA SUCURSAL DO RIO

Carlos Manga fala sobre as dificuldades que enfrentou para fazer seus primeiros filmes, sua inexperiência e a precariedade técnica.
Nesta continuação da entrevista iniciada à pág. 1, Manga segue explicando como foi chamado a dirigir seu primeiro filme na Atlântida, depois de fazer alguns bicos.
*
Carlos Manga - Filmei o Oscarito saindo de casa, meio afobado, chegando de carro no estúdio para filmar e tomando chá de cadeira, até ser chamado para entrar em cena. O Severiano (Ribeiro Jr., dono da Atlântida) gostou do meu trabalho e sugeriu que eu dirigisse uma cena musical em ``Carnaval Atlântida": a do Dick Farney cantando ``Alguém Como Tu".
Acabei dirigindo outra, mais pretensiosa: a do sonho do conde Verdura (José Lewgoy), onde Nora Ney canta ``Ninguém Me Ama". Severiano adorou, me chamou à sala dele e perguntou se eu tinha alguma idéia para um filme.
Folha - E você tinha?
Manga - Tinha. Uma história envolvendo problema racial, com o Grande Otelo gostando de uma mulher branca que se apaixona pelo Oscarito. Nada original, mas racismo era meio tabu naquela época. Severiano topou a idéia e eu assinei contrato de um ano para dirigir mais de um filme.
Antes, porém, ele me batizou. ``Qual o seu nome todo?", perguntou. José Carlos Aranha Manga, respondi. ``José é muito comum", disse ele. ``Aranha, muito estranho. Você vai se chamar Carlos Manga, só". E assim foi.
Folha - Como foi o primeiro dia de filmagem de ``A Dupla do Barulho"? Nervos à flor da pele?
Manga - Pânico total. Só parcialmente contornado por calmantes. Para que ninguém desconfiasse do meu estado de nervos, resolvi bancar o zangado, gritando e dando esporro em todo mundo. Cheguei até a cometer umas grosserias. Depois, amaciei.
Folha - Pura insegurança...
Manga - Das brabas. Mas por causa dela eu me vi compelido a estudar muito, a me aperfeiçoar ao máximo no ``métier", dentro das minhas possibilidades e das possibilidades da Atlântida. Passava a noite em casa, pensando no que faria no dia seguinte. Só depois do meu quarto ou quinto filme é que comecei a estudar teoria e a conversar sobre estética etc.
Folha - Apesar de bem montados, os estúdios da Atlântida tinham sérias deficiências. Qual foi a primeira dificuldade que você teve de contornar durante uma filmagem?
Manga - Dar credibilidade a um tiro de revólver. A gente puxava o gatilho, saía um estampido de espoleta. Tentei vários truques para obter o som de um tiro de verdade. Sabe como consegui o mais próximo do real? Com a batida da claquete reproduzida de trás pra diante. Não tínhamos técnicos em efeitos especiais e o jeito era inventar. Em ``Os Dois Ladrões", eu consegui fazer o Cyll Farney conversar com ele mesmo, numa mesma tomada, usando apenas uma fita isolante e fazendo uma dupla exposição. Os técnicos da Líder (laboratório cinematográfico) ficaram loucos quando viram aquilo. Também o uso do contraluz eu descobri experimentando.
Folha - Como era o seu relacionamento com os atores?
Manga - Sempre me dei bem com eles. Para explicar a eles como eu queria a cena, eu os imitava. Fazia isso porque não tinha experiência de dirigir atores. Mas deu certo. Até o Oscarito eu imitava -e ele me achava muito engraçado. Tive sorte de começar trabalhando com ele e o (Grande) Otelo, dois gênios da comédia. Oscarito tinha uma noção de ``timing" perfeita, um senso de humor fabuloso, era inventivo à beça.
Folha - Quais foram os seus mestres fundamentais na Atlântida?
Manga - Em primeiro lugar, Watson Macedo. Nunca trabalhei com ele, mas foi vendo os filmes dele que aprendi aquele jeito rápido, dinâmico, espontâneo, meio americano, de narrar uma história. Depois, o Tanko, pela noção de composição cinematográfica, pela sofisticação visual. Ele foi assessor técnico de ``Nem Sansão Nem Dalila", cuidando para que nada faltasse à produção, e me ensinou muita coisa. Por fim, Cajado Filho, que fazia tudo na Atlântida: argumento, roteiro, cenários. A pitada decisiva na chanchada quem deu foi ele.
Folha - Quais os diretores que mais o fascinavam naquela época?
Manga - Os mesmos de hoje: os que sabiam contar bem uma história. John Ford, Michael Curtiz, William Wyler, Robert Wise, Billy Wilder, esse time. Poderia ficar horas, citando as minhas admirações. Puxa, tinha o (Rouben) Mamoulian, o Howard Hawks, o Frank Capra. Incluo até diretores ditos menores, como Bud Boetticher, que fazia uns faroestes ótimos com o Randolph Scott.
Claro que os europeus também me impressionavam: o Rossellini, depois o Antonioni, o Godard, mas estes me pareciam inimitáveis, eram pessoais demais. Ah, sim, e Orson Welles, é claro.
Folha - É verdade que você quase pirou ao ver por acaso ``Cidadão Kane", em 1958?
Manga - É. O filme ia passar numa retrospectiva do cinema americano, organizada pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna. Soube da sessão através do Alex Viany, fui ver e saí disposto a abandonar o cinema e abrir uma farmácia.
Folha - Certos diretores, como certos filmes, exercem sobre nós um poder euforizante, nos estimulam a fazer filmes. Outros, embora geniais, provocam justamente o contrário, são brochantes porque, aparentemente, inatingíveis. Para algumas pessoas, um filme como ``Cidadão Kane" pode ser estimulante ou brochante. Truffaut é sempre estimulante, ao contrário, por exemplo, dos musicais da Metro. Você concorda?
Manga - Concordo. Truffaut é muito estimulante. Os narradores clássicos, como Curtiz, Wyler, também. Ford te anima, embora a genial simplicidade dele seja intransferível e inatingível. Musical é brochante. Não temos a infra-estrutura necessária para competir com os gringos. Mas um ``Noviça Rebelde" daria para se fazer aqui porque não tem coreografia complicada. Filmes de ação também são brochantes. Coisas como ``Duro de Matar", nem pensar. Para explodir um único carro, a gente demora dias. Aquela queda do Marcos Winter em cima do carro, na minissérie ``Agosto", me tomou um mês de trabalho, até chegar ao efeito correto. Foi um trabalho de puro artesanato -e muita paciência e experimentação. Nem na Globo temos técnicos especializados nesse tipo de coisas.
Folha - Que filmes mais o deixaram frustrados na Atlântida?
Manga - Aqueles que eu sabia, de antemão, que não dariam certo. Todos os derivados de peças de teatro, como ``Cupim", ``O Golpe" e ``Papai Fanfarrão".
Folha - Como você reage às análises que hoje se fazem às suas paródias?
Manga - Adoro. Mas a verdade é que eu não tinha a menor noção de metade das coisas que hoje falam a respeito de ``Nem Sansão Nem Dalila". Todos aqueles simbolismos fazem, de fato, sentido, mas tudo foi criado de forma intuitiva, sem segundas intenções. Claro que estávamos parodiando o filme do Cecil B. De Mille e que o personagem do Oscarito foi inspirado no Getúlio Vargas do Estado Novo, mas nem a palavra paródia a gente usava.
A gente se referia ao filme como uma sátira. O curioso é que hoje, quando faço alguma coisa consciente nas minisséries, ninguém nota. Fiz o escritório de ``Engraçadinha" todo em vermelho, porque era lá que ela perdia a virgindade e o rapaz perdia o pênis, mas nenhum crítico notou o uso dramático da cor.
Folha - Que tipo de satisfação lhe dá a Rede Globo?
Manga - É a minha nova Atlântida, só que com muito mais recursos e um padrão de qualidade forçado pela necessidade de competir internacionalmente. As minisséries são como longas-metragens. Mas é claro que eu sinto uma saudade danada do cinema.
Folha - Que só tem condição de existir, hoje em dia, associado à televisão.
Manga - Sem a parceria da TV, não há saída para o cinema. É assim no mundo inteiro e não será diferente no Brasil. Isso ainda vai acontecer. Mas, quando acontecer, já estarei numa cadeira de rodas.
Folha - Você tem algum projeto para cinema guardado na gaveta?
Manga - Nenhum. Tirei o cinema da minha cabeça. Se aparecesse uma chance, gostaria de fazer algo romântico. Há um livro do Jorge Amado que eu adoraria adaptar ao cinema, ``Velho Marinheiro", mas, infelizmente, os direitos de filmagem foram comprados pelo Anthony Quinn, que não ata nem desata. Tenho até um ator para fazer o marinheiro: Antonio Fagundes.

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