São Paulo, sexta-feira, 11 de agosto de 1995
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O efeito Hiroshima

MAILSON DA NÓBREGA

O registro do cinquentenário da hecatombe de Hiroshima, domingo passado, teve um aspecto muito relembrado: o seu continuado efeito nos sobreviventes. Ainda hoje existem hospitais para tratamento dos atingidos pela radiação.
Poder-se-ia falar então de um efeito Hiroshima, que seria a permanência, por um longo período, das consequências de um acontecimento nefasto.
No Brasil, esse efeito é observável na Constituição de 1988. Primeiro, um impacto devastador sobre as finanças públicas. Depois, as consequências duradouras sobre o regime fiscal e a economia.
De imediato, a Constituição transferiu mais um quinto da arrecadação federal para os Estados e municípios, sem a correspondente transferência de responsabilidades. Aumentou as vinculações de receita a despesa. Criou novas despesas na União. Enrijeceu dramaticamente o Orçamento. Piorou o sistema tributário.
A nova Carta Magna revigorou o modelo de intervenção estatal na economia, já então em acelerada exaustão. Idéias em desuso e até portarias ministeriais viraram preceito constitucional. O mesmo ocorreu na área dos monopólios estatais, com aumento de ineficiência na economia.
Diferentemente dos países que estão revendo políticas públicas, o Brasil se tornou o único caso em que reformas significam mudar a Constituição, até mesmo para rever o conceito de empresa nacional. O cipoal de normas deu origem a um neologismo: desconstitucionalizar.
Incapazes de enxergar as mudanças em curso, os constituintes revolveram voltar ao passado. Desestruturam o Estado, pensando fortalecê-lo. O ambiente da época guarda semelhança com o de Weimar e de sua Constituição, de onde brotaram muitos dos conflitos distributivos que desembocaram na hiperinflação alemã.
Por isso, muitos asseguravam que seria difícil evitar o desastre. Tratar-se-ia de mero resultado da descompressão de demandas sociais e federativas. Significaria uma reação natural à concentração de renda e poder herdada do regime militar.
O renascimento do populismo no bojo da redemocratização é outra forte explicação. O velho vício reapareceu impulsionado pelo corporativismo e pelo clientelismo. Adquiriu ares de legitimidade: "resgatar a dívida social", "defender a soberania", "proteger a economia nacional", "salvar a agricultura", "garantir os direitos dos trabalhadores".
Os rumos poderiam ter sido outros se a Constituição tivesse acontecido posteriormente à queda do muro de Berlim e ao fracasso do socialismo real. Por exemplo, dificilmente teria adquirido status constitucional ampliado o mais conspícuo resquício do fascismo no Brasil, a legislação trabalhista.
Escrita em nome da cidadania e da justiça social, a Constituição terminou por amplificar as desigualdades. Contribuiu para aprofundar o processo hiperinflacionário. Criou barreiras à estabilidade da moeda e ao desenvolvimento sustentado da economia. Não foi pior porque muitos de seus dispositivos jamais foram regulamentados.
Felizmente, as maiorias perceberam o engodo. O sucesso do Plano Real aumentou o apoio social às mudanças. As reformas, longas e difíceis, começaram com animadora energia. Por isso, há esperanças de que celebremos o cinquentenário da Constituição livres de seus inúmeros defeitos.

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