São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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Reformas: a singularidade do Brasil

ANTONIO KANDIR

É comum ouvir-se em alguns meios comentários negativos quanto à velocidade e dimensão dos processos de reforma estrutural no Brasil. É comum também que esses comentários tomem de empréstimo o caso de outros países para supostamente comprovar que "aqui as reformas saem a conta-gotas por falta de ousadia política".
Comentários do gênero têm-se tornado ainda mais frequentes agora que nos preparamos para entrar na etapa mais difícil das reformas constitucionais. Teriam razão os que expressam esse ponto de vista?
Para responder à pergunta, importa analisar comparativamente o fator determinante da velocidade e dimensão das reformas estruturais, as condições políticas em que se iniciam e evoluem (ou não) esses processos. Estudos mostram que a velocidade e abrangência das reformas tendem a ser tão maiores quão mais ampla for a autonomia do Executivo federal. A esse respeito, são notáveis as diferenças entre o Brasil e países latino-americanos (Argentina, Bolívia, Chile e México).
A primeira diferença refere-se à profundidade da crise em que emerge um governo empenhado em fazer as reformas estruturais (bem maior nos outros países, à exceção parcial do México). Em situações de crise aguda, tipicamente acompanhadas de hiperinflação, criam-se condições para a afirmação de lideranças com grande autonomia política para lançar programas de estabilização associados a reformas estruturais abrangentes e aceleradas. Isso porque a sensação de caos desperta uma demanda social por mais governo, isto é, pela afirmação de um poder político que "ponha ordem na casa", ainda que com custos elevados (em alguns casos à custa do regime democrático).
Mesmo quando a crise aguda não provoca a morte da democracia, ela tende a gerar condições políticas propícias à ampliação da autonomia do Executivo federal frente aos demais poderes, governos locais e oposição (são exemplos típicos os casos da Argentina e da Bolívia).
A segunda diferença importante diz respeito ao sistema partidário, aos partidos em si e às relações entre governo central e governos locais. Quanto a esses itens, não é razoável comparar o Brasil com Chile e México, pois o Chile fez grande parte das reformas sob a ditadura do general Pinochet e o México sob o domínio quase absoluto do PRI. Já a comparação com Argentina e Bolívia permite observações interessantes.
A comparação revela que, em ambos os países vizinhos, as condições do presidente para forjar maiorias sólidas de apoio ao lançamento e implementação das reformas estruturais eram e são mais favoráveis. Na Bolívia e Argentina são poucos os partidos dominantes e o presidente pode contar com o apoio disciplinado do seu partido e aliados de coalização, no Congresso e nos governos locais (importantes no caso da Argentina).
A terceira diferença relevante diz respeito às exigências formais para aprovação das reformas estruturais no Congresso. Nem Argentina nem Bolívia (deixo de fora de novo Chile e México, por razões já ditas) defrontaram-se com o desafio de mudar a Constituição, o que exige sempre quorum qualificado, para promover as reformas estruturais.
No Brasil, em contraste, a crise não atingiu o paroxismo da hiperinflação, o sistema partidário é fragmentado, os partidos indisciplinados e as reformas estruturais implicam, em boa parte, mudanças na Constituição. Não é ocasional, portanto, tampouco produto de falta de ousadia política, que as reformas tenham ritmo mais gradual.
Mais do que em qualquer outro dos casos, aqui as condições políticas das reformas estruturais têm de ser recriadas a cada etapa do processo. É o que se está fazendo. A cada passo da reforma, firma-se um andaime a mais que permita o próximo passo para uma etapa superior do processo. Trata-se de complexa obra de engenharia política. Talvez mais lenta e complicada do que seria desejável, mas certamente menos vulnerável aos males associados aos regimes autoritários (males bem conhecidos) e às democracias hiperpresidencialistas (personalização excessiva do poder presidencial e redução do Congresso ao papel de máquina ratificadora de decretos).

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