São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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Milionários e mendigos dividem ruas de NY

MARCELO RUBENS PAIVA
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Mesmo um brazuca, que não se surpreende com as desigualdades de economias malevolentes, em que desfilam, lado a lado, poucos milionários e hordas de miseráveis, toma um susto quando chega a Nova York. Em toda parte, mendigos com copinhos de plástico atropelam os pedestres, balbuciando o que só o tempo é capaz de traduzir: ``A dollar, please".
Catadores de latas de refrigerante são tão antigos quanto a Coca-Cola: há muito compõem parte da cena americana, fuxicando cestos de lixo das grandes cidades à caça de latinhas que valem, hoje, 5 cents. A novidade é a quantidade de velhos, jovens, moças, viciados, bêbados, doentes mentais e até deficientes, nas esquinas ou nos faróis, pedindo esmolas.
A data
O ano de 1986 foi a data da chegada do crack, do pontapé inicial da recessão americana (a bolsa de Nova York veio quebrar no ano seguinte) e do ápice da política neoliberal da era Reagan, quando o Partido Republicano propôs, e foi levado ao poder pelo voto direto, baixar os impostos da classe média, consequentemente diminuindo as verbas da educação e saúde públicas. O ``império do mal" (o comunismo) rangia os dentes, na opinião de Reagan, e preparava o contra-ataque. Toda e qualquer verba pública restante deveria ser destinada para a invisível guerra do bem contra o mal.
A fórmula
A trajetória de um homeless, cuja tradução se aproxima ao nosso ``sem teto", era, até então, simples de se acompanhar. Num economês de padaria, o profissional liberal ``X" é um adepto otimista da seita ``o sucesso não ocorre por acaso". Investe em si mesmo comprando, com seus cartões de créditos, ternos italianos, um apê na Park Avenue, uma casa num condomínio afastado, uma BMW e uma Mercedes e obras de arte; trabalha há anos na mesma empresa, e não há furo. Há sim. Recessão: ``X" perde o emprego, os juros sobem, os bancos tomam seus bens. ``X" vai para rua, ``sem teto", com um pepino na mão e dívidas impagáveis na outra; dificilmente obterá crédito numa instituição financeira, o que, para um americano, é o convite para seu funeral.
Abriram-se as portas dos hospitais psiquiátricos na onda do ``civil liberty", garantindo aos doentes mentais o direito de ir e vir. Nenhuma lei os forçava a ficar trancafiados, isolados da sociedade; em voga, a ótica de acompanhá-los por um tratamento à distância. ``X" ganha, então, a companhia de ``Y", doente mental que passa a viver nas ruas.
``Z" é chegado num rala-rala. Paga caro sua cocaína. Experimenta o crack que custa apenas US$ 5,00 a dose. O crack vicia imediatamente; ``Z" mal percebe que foi empurrado para o hall dos famosos casos perdidos. As clínicas de apoio aos drogados estão sem verbas. ``Z" está nas ruas, de onde não sai mais. Dinheiro? Estende a mão. Para comprar, basta perambular. Haverá sempre um enviado que se aproxima e oferece: ``Dope, dope?" Comprar drogas em Nova York é uma baba; têm para todos, de todos os tipos.
Somam-se a este ``XYZ" os veteranos do Vietnã, ainda hoje vistos como desajustados possuídos, prestes a entrar num McDonald's para detonar dezenas de inocentes, acertando contas com seu passado desmiolado, os soropositivos expulsos do lar, os deficientes expulsos das falidas clínicas de reabilitação e os 500 mil imigrantes ilegais que entram nos EUA a cada ano segundo o IRCA, ``Immigration Reform and Control Act".
Os tipos
São mais de 100 mil sem-teto em Nova York. Apenas 25% são atendidos pelos programas de reabilitação social, que cedem cama, comida, banho e, em alguns casos, acompanhamento psicológico. Charles Green, relações públicas da organização não governamental ``Partnership for the Homeless", afirma que 94% dos homeless são minorias (negros, hispânicos etc), e um quarto do total é composto por doentes mentais.
E, se numa noite você precisar de dinheiro e, ao entrar num caixa eletrônico, se deparar com um homeless dormindo, não se assuste e nem desista: homeless não roubam. A prova disso é que escolhem os lugares policiados para dormir, como o Carl Schurz Park, na beira do East River, um dos preferidos de Woody Allen; por estar em frente à residência do prefeito, é um dos parques mais policiados de Nova York.
A favela
Em Manhattan, sob a Manhattan Bridge, surpresa: uma favela com a vista para Wall Street. Nada diferente das muitas brasileiras, com barracos de madeira e papelão, imagens de santos nas paredes, buquês de flores nas janelas, e o cheiro concentrado de lixo. O entra e sai é suspeito. A metros do centro financeiro de Nova York, a favela é conhecida como o último degrau: quem nela entra, dela sai num paletó de madeira.
O profissional
Alunos de cinema da Universidade de Nova York preparam as luzes para uma filmagem externa. Um dos figurantes, já vestido e maquiado como um homeless, espera encostado num poste. Passa a receber esmolas dos transeuntes que o confundem com um verdadeiro. Para a surpresa de todos, o ator fatura, em uma hora, duas vezes o que estava recebendo para trabalhar no filme.
Se são 100 mil homeless que chegam a faturar algo entre US$ 100 a US$ 200 dia de trabalho (esmolas). A economia dos homeless da cidade de Nova York gira anualmente US$ 3,6 bilhões! Cada um pode faturar algo em torno de US$ 3 mil por mês, quase cinco vezes o salário mínimo.
A guerra
Perguntei a Jonathan Meyer, diretor-executivo da NCS, ``Neighborhood Coalition for Shelter" (Coalizão da Vizinhança para Abrigo), se se deve dar esmolas para um homeless. ``Não! Dê isso", e me entregou um folheto do NCS, no qual se lê ``onde arrumar ajuda se você é um homeless do Upper East Side", bairro do NCS.
O folheto explica que em situação de emergência, o homeless deve ligar para o 911 que os policiais estão orientados para levá-lo ao NCS. Há ainda uma lista das igrejas e templos que servem café da manhã, sopas, almoços e jantares gratuitos.
O NCS é uma organização que sobrevive de verbas do governo e da iniciativa privada. O objetivo, segundo o folheto, é ``ajudar os homeless retornar à vida independente". Funciona 24 horas por dia e oferece comida, roupa, cama e banho. Perto de 200 voluntários, incluindo assistentes sociais, conselheiros para o trabalho, médicos e psicólogos, ajudam os cerca de 2.200 homeless da vizinhança. Meyer é definitivo em relação às drogas: ``Não há tratamento conhecido para o crack. Antes, a heroína era a má notícia. Hoje, a heroína é a boa notícia". Segundo ele, de cada 5 pessoas que atende, 4 têm problemas com a cocaína.
O assunto tem tirado o sono dos americanos. Na TV, é veiculado um comercial de uma seguradora que faz consultoria grátis para proprietários, com imagens de homeless. O presidente Bill Clinton foi eleito pois tais imagens tornaram-se constantes. Clinton é uma esperança. Esperança é grátis, livre de sódio e gordura, não tem colesterol e não prejudica a saúde.

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