São Paulo, sábado, 19 de agosto de 1995
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Escândalo dos sem-terra prejudica os sem-teto

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Devo confessar ao leitor que sempre me despertou alguma perplexidade o fato de haver um vigoroso e organizado movimento dos sem-terra e -na medida do que sei- um estrito e menos divulgado movimento dos sem-teto.
Há grave desproporção numérica entre os que não têm áreas agricultáveis (mal menor do que não ter casa onde morar dignamente) e aqueles que, nos centros urbanos, grandes e pequenos, não encontram para si mesmos e suas famílias abrigo provido dos mais elementares confortos da vida moderna, como água e luz.
A Constituição tem um capítulo sobre a política de desenvolvimento urbano, a ser executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. A julgar pelo que se vê nas periferias faveladas, o capítulo constitucional ainda ``não pegou".
Considerando que mais de dois terços da população brasileira mora nas cidades, a perplexidade cresce proporcionalmente ante a diferença que o tratamento dos dois problemas sociais vem recebendo dos órgãos de governo em geral, ainda que a principal responsabilidade pelos temas urbanos se esgote em nível municipal.
Mesmo a mídia acompanha com atenção o movimento dos sem-terra, até pelo elevado padrão profissional de organização do movimento, enquanto o drama desordenado dos favelados e desprovidos de casa ganha pouco espaço.
A política de desenvolvimento e expansão urbana, a função social da propriedade nas cidades de médio e grande porte com vistas a atender exigências de sua ordenação e as desapropriações para satisfação de relevantes necessidades sociais, enquanto elementos de importância evidente na garantia da paz social, continuam relativamente marginalizadas.
Conflitam com a atenção dada ao movimento dos sem-terra, que cria eventos para as manchetes e para os programas televisivos do horário nobre, mas prejudica a consciência dos temas urbanos em parcelas substanciais da população.
Nas grandes cidades, onde a concentração populacional agrava as condições de vida das pessoas em espaços relativamente menores, a exigência de parcelamento ou edificação compulsórios é cumprida em ritmo lento. A possibilidade de imposto predial e territorial urbano progressivo, a desapropriação em títulos da dívida pública do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, com a finalidade de promover seu adequado aproveitamento está na Carta Magna, mas ainda com aproveitamento inexpressivo para que se implemente política urbana digna desse nome.
Ninguém duvida que grande parte dos temores gerados pela violência urbana -muito mais sérios e intensos que os da ocupação da terra- decorrem da inexistência de morada digna para importantes segmentos populacionais. Aquele que não dispõe de um espaço para abrigar-se, que não tem um ponto estável no qual possa permanecer protegido com sua família, tende a perder noção dos valores da convivência, da vida conjunta com outras pessoas, a se ajudarem reciprocamente.
Nada obstante a situação constatável em todo o território nacional, a discrepância de tratamento prossegue, sem sensibilizar a cidadania. Está na hora de pensar nisso. Acrescento meu alerta aos que já têm surgido a respeito.

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