São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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Os perigos da inocência

ROBERTO CAMPOS

"O socialismo, que se tem na conta de novo, é um velho matricida. Sempre matou a República, sua mãe, e a liberdade, sua irmã."
(Honoré de Balzac)

Gilberto Amado costumava dizer que tinha um orgasmo cada vez que encontrava um brasileiro remotamente capaz de ligar causa e efeito. Muito mais difícil é encontrar um brasileiro inocente.
Pois um dos grandes heróis da literatura nacional é Macunaíma, o herói sem caráter. Agora, parece que encontrei algum desses raros espécimes. Um leitor brasileiro, de Nova York, em carta à Folha, manifesta surpresa de que a vitória do neoliberalismo não houvesse acabado com a minha fúria contra os socialismos e que eu seja indiferente a bens como educação e saúde, desejados por todos, mesmo nos regimes capitalistas.
Pois aproveitemos a oportunidade para tirar a inocência -intelectual, é claro- a esse compatriota expatriado, que vive no país supostamente sede do neoliberalismo.
Neoliberalismo é uma expressão não muito precisa, bem usada, por pensadores do gabarito de R. Dahrendorf, e mal usada, como se fosse uma espécie de nome feio, por tudo quanto é bobo de esquerda. Como poderão ser identificados os oponentes do neoliberalismo? Os antônimos que vêm à mente são neodirigismo, neoconservadorismo, neo-socialismo, neo-autoritarismo ou simplesmente saudosismo!
O desejo de resguardar do descrédito intelectual a idéia de esquerda levou N. Bobbio, politólogo italiano muito popular no Brasil, a dizer que ela continuaria viva, porque algumas pessoas sempre dariam ênfase à equidade, enquanto que outros prefeririam a eficiência. É um curioso contra-senso. Como pode haver-lhe escapado que equidade não é o antônimo de eficiência e que, pelo contrário, a pressupõe? Eficiência e equidade pertencem a espaços distintos do entendimento. A primeira é essencialmente lógica, operacional, ao passo que a segunda é uma idéia atributiva de valores -em última análise, quem deve ter o quê, e quem deve contribuir com quê. É trivial que, quanto mais eficiente o sistema, maior o potencial de satisfação das demandas e, por conseguinte, da equidade.
Talvez Bobbio, sem querer, se tenha traído ao subentender esquerda como sinônimo de ineficiência. As esquerdas reais, na verdade, ao se imaginarem capazes de transformar o mundo à sua maneira, tropeçaram no problema da eficiência, que não foram capazes de resolver.
Por isso, sem confessá-lo, contrapunham como opostas duas noções que, pelo contrário, se complementam. As preocupações sociais começaram, no mundo moderno, a partir das mesmas raízes do racionalismo e do humanismo de que surgiram as idéias liberais. Estas acentuaram a preeminência da liberdade individual contra todos aqueles que, por motivos religiosos, políticos ou qualquer tipo de mitologia, se julgavam autorizados a determinar o que seria melhor para o resto do gênero humano.
É preciso não confundir a solidariedade humana e a empatia pela condição alheia, que constituem um dos traços mais nobres da alma humana, conhecidos em todas as grandes culturas, com socialismo.
Os socialismos -que vêm numa grande variedade de cores e tamanhos- caracterizam-se por duas premissas comuns. A primeira é que um ente coletivo -a mística "volonté générale" de Rousseau, que vestiu variados totalitarismos, seja do Partido, do Estado ou da comunidade racial (o caso do nazismo), sabe decidir melhor do que nós mesmos o que seria melhor para nós. Não se acanhando, aliás, de baixar a lenha para nos impor a felicidade oficial na marra, acabando com essa bagunça econômica e política provocada pela liberdade individual!
A segunda é que o Estado é um benfeitor, cujos funcionários são missionários devotados ao bem e não agentes políticos em busca de poder e promoção pessoal.
Não há, propriamente, uma teoria econômica liberal. Existe uma grande corrente central, cujo objeto é a economia de mercado, e uma proliferação de pequenos ramos paralelos ou parcialmente divergentes. Nessa teoria, não há nada de contrário aos programas sociais. O que há é que a teoria econômica, por definição, tem como preocupação central a eficiência -não é mais que a ciência do emprego de recursos escassos, que podem ter outros usos, entre fins alternativos. E essa noção de economia é muito antiga. Desde a Idade Média, está formulada como a navalha de Occam no pensamento lógico.
Por muitas razões, que não cabem neste espaço, mas em parte são intuitivas, os governos e suas burocracias sempre se revelaram maus planejadores e péssimos gestores, salvo em condições excepcionais e por curtos períodos.
Há 35 anos, ainda era possível a um líder soviético, N. Khruschov, acreditar (como o haviam feito Lênin, Trotski e seus companheiros de 1917) na superior eficiência do socialismo em relação ao capitalismo. Khruschov chegou a dizer solenemente que até 1972 a hoje ex-URSS superaria economicamente os Estados Unidos! Mas era tudo fantasia e ignorância. Todo o edifício do socialismo real desmoronou completamente na última década.
O mercado é excelente mecanismo para apurar as preferências das pessoas. É a forma mais democrática imaginável, um plebiscito ininterrupto para sinalizar os preços relativos dos fatores, sem os quais não há cálculo racional possível. Mas esse mecanismo tem duas limitações que explicam a confusão dos desinformados. Ele não é ideal para tratar de bens que não possam ser objeto de transações. E não toma em consideração valores de outra ordem que não o dinheiro de que cada um disponha. No supermercado, os dinheiros da madre Tereza de Calcutá e do Rockefeller são vistos com impecável igualdade.
Mas isso não é problema nenhum nos países sérios. Basta olhar a Alemanha, implacável economia de mercado e socialmente avançadíssima. A sociedade, pelos seus representantes políticos, cobra impostos para pagar aqueles bens públicos que não possam ser devidamente pagos pelos usuários e transfere recursos para ajudar aqueles em situação menos favorável. Programas sociais exigem a maior eficiência possível, ainda mais do que as atividades econômicas propriamente ditas, pois nestas o mercado castiga automaticamente os menos eficientes. Note bem, amigo inocente: programas sociais não querem dizer a mesma coisa que governo fazer coisas -e muito menos que deixe de lado as atividades essenciais para se meter a produtor em centenas de estatais corruptas, cuja verdadeira justificativa, no fundo, é serem cabides de empregos para clientelas políticas.
Não nos esqueçamos, porém, de que usos alternativos de recursos escassos significam que também os programas sociais têm de ser analisados em termos de custos e benefícios e comparados com usos alternativos dos mesmos recursos.
Eficiência não é o antônimo de bem-estar social. É condição prévia. Um liberal é apenas alguém que quer o máximo de liberdade e bem-estar para todos. Sabe que isso exige o máximo de eficiência e requer um Estado enxuto, capaz de fazer aquilo que os agentes econômicos individuais, por si sós, não podem fazer tão bem -coisas como Justiça, segurança pública, infra-estrutura, escolas, hospitais, bibliotecas, defesa do meio ambiente. "It is that simple".
Um inglês que todo o mundo entende...

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