São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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Pesquisador revela como o cérebro vê o mundo ao seu redor

OTÁVIO DIAS
DE LONDRES

O professor de neurobiologia da Universidade de Londres Semir Zeki começou a pesquisar como o cérebro vê o mundo há 25 anos.
Segundo ele, o homem é um animal basicamente visual. A melhor maneira de decifrar o funcionamento do cérebro humano seria, portanto, por meio do estudo dos segredos da visão.
Para o cientista, membro da Academia Européia de Ciências e Artes, o cérebro constrói sua realidade própria, com base nas informações do mundo externo, mas independente dele. ``Tudo está dentro do cérebro", diz.
Aos 56 anos, Semir Zeki, nascido em Beirute (Líbano) e cidadão britânico, é apaixonado pelas artes visuais e por música clássica, que, na sua opinião, oferecem chaves para a compreensão do cérebro.
Seu último livro, ``La Quête de l'Éssentiel" (A Busca pelo Essencial), publicado este ano pela editora francesa Les Belles Lettres, é resultado de uma conversa com o pintor francês Balthus.
Semir Zeki é também autor de ``A Vision on the Brain" (Uma Visão do Cérebro, Blackwell Scientific Publications).
Leia a seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Folha no último dia 9, em seu laboratório na Universidade de Londres.
Folha - De que maneira sua pesquisa contribui para os estudos sobre o cérebro?
Zeki - Somos animais basicamente visuais. Ninguém poderá entender o cérebro se não entender como funciona o processo visual. Ao estudarmos a estrutura do cérebro, percebemos que ele é muito parecido como um todo. Deve então haver alguns princípios gerais.
É muito mais fácil compreender como funciona o cérebro através do processo visual. É possível estimular uma pessoa com sinais visuais e ver as reações no cérebro.
Finalmente, há situações em que o cérebro pode ir além da informação dada. No processo visual, há atividades mentais como sonhos e alucinações e hoje podemos estudá-las cada vez melhor, o que não é tão fácil de fazer em outros sistemas, como a memória.
Folha - Quando o sr. diz que o cérebro vai além da informação dada, quer dizer que o cérebro cria sua própria realidade?
Zeki - A única realidade que temos é a realidade do cérebro. Esta é uma mensagem muito importante. Você pode imaginar algum pintor que tente representar a luz ultravioleta? Não, porque o cérebro não é sensível à luz ultravioleta por intermédio dos olhos. Ela está fora da realidade do cérebro. As próprias cores não existem no mundo lá fora. Elas são criadas pelo cérebro.
Não estou dizendo que o cérebro é uma selva que cria suas próprias leis. Ele cria as leis de acordo com a realidade física, mas elas não são idênticas à realidade. São leis do cérebro. Muitas vezes ele vai além e nos prega peças.
Folha - Essa capacidade de ir além da realidade física pode ser uma explicação para o desenvolvimento do ser humano?
Zeki - Uma das principais características do homem é que ele é capaz de associar, consegue estabelecer associações. Não há nada no mundo lá fora que nos diga que temos de associar isto com aquilo.
Quanto mais associações pudermos fazer, mais independentes seremos da realidade física e maior será o nosso desenvolvimento. Uma pessoa totalmente dependente da realidade física é um escravo. A realidade externa é manipulada pelo cérebro de tal modo que ele a usa para criar seu próprio mundo e se tornar independente.
Folha - Vários livros têm sido publicados sobre a consciência. Qual é a sua opinião sobre eles?
Zeki - A consciência está na moda, como um vestido de Chanel, mas nenhum desses livros tem resposta para a questão do que é consciência. São só conjecturas.
Mais apropriado seria indagar se existe uma suprema consciência, que nos permita dizer ``penso, logo existo", ou se podemos fracioná-la em várias consciências. Qual é a base neurológica mínima para atingir um pouco de consciência?
Acho importante estudar a consciência, mas acho que não sabemos o suficiente para colocar a questão de maneira apropriada.
Folha - A consciência é a característica que define o homem?
Zeki - Não podemos dizer isso, porque estaríamos afirmando que os macacos, por exemplo, não são conscientes. Acho que as características que definem o homem são a linguagem, a capacidade de discernimento e previsão, a memória e a capacidade de associação.
Folha - O sr. poderia descrever sua pesquisa?
Zeki - A pesquisa é sobre como o cérebro vê o mundo. Quando começamos a pesquisa há 25 anos, pensava-se que havia um centro de recepção visual primário, no córtex cerebral, cuja função era ver, e que havia uma outra área no córtex dedicada a entender o que se via.
Com as pesquisas, percebemos que, além desse centro de recepção visual primário, chamado V1, existem não apenas uma, mas diversas áreas de visão. Estabeleceu-se então o princípio de multiplicidade no sistema visual.
Folha - Qual foi o próximo passo da pesquisa?
Zeki - Foi mostrar que cada área é especializada. Introduzimos eletrodos no cérebro de macacos e observamos a resposta das células a estímulos visuais.
Descobrimos que há células sensíveis ao movimento, mas que não estão interessadas nas cores.
Depois estudamos uma área onde a maioria das células responde às cores. Algumas células respondem melhor a certas cores. Umas respondem ao vermelho, outras ao azul ou ao verde. Então, chegamos à conclusão de que havia uma especialização por cores.
Noutra região, as células são sensíveis à orientação: algumas respondem a sinais horizontais, outras a verticais. São células interessadas na forma dinâmica.
Podemos então separar forma, cores e movimento. No entanto, não podemos separar forma e cor completamente, porque toda forma tem uma cor e toda cor confinada em uma espaço tem uma forma.
Folha - Quais seriam os mais importantes avanços na área de pesquisa do cérebro?
Zeki - Diria que um dos principais é o desenvolvimento da tecnologia que nos permite olhar dentro do cérebro humano. Também tem havido muito progresso na área da química cerebral.
Talvez o maior avanço seja que hoje se podem colocar questões que há 25 anos pareceriam ridículas. Não é mais considerado bobagem fazer perguntas sobre consciência, paixão, ódio, amor, em termos da organização do cérebro.
Estados mentais subjetivos não eram estudados pela ciência porque os cientistas consideravam que eles não eram observáveis. Hoje, se alguém não levar em consideração essas questões, é melhor parar de estudar o cérebro, porque não vai conseguir entendê-lo nunca.
Compositores como Mozart, Beethoven, Wagner, por exemplo, sabiam mais sobre as regras de funcionamento do cérebro do que nós neurologistas. Eles fizeram composições que são apreciadas por milhões, porque entram em contato com os estados mentais subjetivos de seus ouvintes.
As grandes conquistas dos homens têm como origem estados mentais subjetivos. Não podemos evitá-los. São um dos principais atributos do cérebro e afetam todos os aspectos de seu funcionamento e de nossas vidas.
Folha - Alguns cientistas dizem que todos esses conceitos -consciência, emoção, alma- são fenômenos físicos que podem ser explicados pelo funcionamento do cérebro. O sr. concorda com essa afirmação?
Zeki - Acho que sim. Se não existe um cérebro, nenhum desses estados existe. Você tem de ter células cerebrais, elas precisam conversar umas com as outras, e, se não houver esta comunicação, nada existe. Tudo está dentro do cérebro, nada existe sem ele.
Folha - Nossa alma é uma criação do cérebro?
Zeki - Essa é uma questão difícil, porque envolve religião. Mas eu diria que sim. O homem como ser emocional e intelectual é criação do cérebro. No entanto, o cérebro é criado pelos genes. Então onde vamos parar? É a história do ovo e da galinha.

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