São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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O olhar atento do cartum

LUIZ PAULO BARAVELLI

Livro reúne desenhos de Angeli publicados na Folha

A caricatura e o cartum são necessariamente irreverentes e por isso nos parecem sempre atividades alegres e "jovens. Essa juventude implícita sugere que, descompromissado do peso da arte, o cartum seria muito mais livre do que a pintura ou o desenho "sérios.
Pesquisando para fazer esta resenha, fui ver nos livros a história da caricatura e fui surpreendido, ao perceber que esta é uma forma de expressão muito antiga e rígida em suas tradições; um cartum de 1800 não é em nada diferente destes aqui do livro do Angeli.
Toda a experimentação modernista dos últimos cem anos passa ao largo da prancheta do cartunista. Nada de abstracionismo, construtivismo ou materialidade aqui. Desde os retratos simbólicos de Arcimboldo (e lá vão quase 500 anos), o dia-a-dia do cartunista é uma espécie de surrealismo pesado, popular, sem cerebralismos psicanalíticos, sem recurso ao fácil do Inconsciente.
Todo dia lemos o jornal e vemos o cartum; achamos graça na interpretação jocosa de algo que não tem graça, sempre alguma mazela política ou social. Vendo reunidos no livro mais de dois anos de cartuns, sem o alívio do resto do jornal e do intervalo de 24 horas, a sensação é de incômodo e angústia. Percebemos por repetição a antiga estratégia de que se vale; o truque que transforma desgraças em sorrisos se esvai e ficamos com os fatos nus e crus.
É muito cinismo, fisiologia e descaso concentrados; não temos descanso, e desconfio que o cartunista também não. Preso no círculo de fogo da metáfora e da metonímia, a forma de expressão se volta, obsessiva, sobre si mesma. Ele se repete porque a história se repete, com pequenas variações e detalhes mais ou menos sórdidos. A crise é imóvel, a linguagem não anda, os problemas não vão embora e a cada dia ele tem de achar um jeito novo de dizer a mesma coisa.
Com os desenhos assim concentrados, vemos também o drama diário do cartunista e simpatizamos com ele. Diluídos no jornal, um pouquinho por dia, a coisa ainda desce; no livro, o sabor azeda. Estes cartuns reunidos não me parecem nada engraçados, nada livres, nada jovens -entendo agora porque o Angeli às vezes se representa como o Velho Cartunista.
Não há nada para experimentar e nenhum avanço de linguagem parece possível. O modernismo e suas experiências parecem aqui fúteis, vazios; talvez estes cartuns sejam a verdadeira arte do século 20. Se são iguais aos de 200 anos atrás, talvez seja porque socialmente ainda estamos 200 anos atrás.
Uma das fantasias arquitetônicas características de certa produção do século 18 (Boullée?) me ficou na memória por ser especialmente lúgubre: o projeto de forma esférica, com as celas todas na periferia e a mesa do diretor e guarda-chefe em um pedestal no centro exato da bola. Daí ele poderia ver a qualquer instante tudo o que estivesse sendo feito por qualquer prisioneiro; esse era o castigo.
Todo dia o cartunista fala para as centenas de milhares de presos (nós), cada um tomando seu café da manhã em uma cela sem segredos. Somos prisioneiros desta visão moralista e, por sua vez, o cartunista é nosso prisioneiro; exigimos e pagamos seu olhar sobre nós. A cada dia, ele nos recorda o que gostaríamos de esquecer e vice-versa.
Leio o jornal, vejo o cartum -famílias miseráveis, empresários gananciosos, políticos corruptos-, que posso fazer? O que o Angeli pode fazer? Vigiamos um ao outro com sorrisos amarelos enquanto os verdadeiros culpados não vão ver este livro, estão nas ilhas Seichelles, na Sorbonne, sei lá, no bem-bom.

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