São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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Chaves que guardam os segredos do Plano Real

CARLOS ALBERTO SARDENBERG
DA REPORTAGEM LOCAL

O melhor do livro de Gustavo Franco está na descrição do processo de invenção da Unidade Real de Valor (URV), definida como a idéia chave do plano de estabilização ainda em curso no país.
Franco mostra em detalhes como a URV foi construída, do ponto de vista econômico e jurídico, para recuperar as funções da moeda, destruídas pela hiperinflação. Pois Gustavo Franco não tem dúvida de que o país passou por um claro processo de hiperinflação.
E quando isso acontece, as três funções clássicas da moeda são destruídas em sequência. Primeiro, ela perde a função de reserva de valor. Ninguém mais guardava cruzeiros no bolso ou no banco.
Depois, a moeda perde a função de unidade de conta. Ninguém mais usava cruzeiros para dar o valor de uma casa, um carro. As coisas passaram a ser contadas em dólar, em Ufir etc.
E finalmente, desaparece a terceira função da moeda, a de meio de pagamento. Isso não chegou a ocorrer inteiramente no Brasil, especialmente entre a população mais pobre, que continuava pagando suas pequenas contas em cruzeiro. Mas os mais ricos já usavam dólar ou papéis indexados.
Franco mostra passo a passo como a URV foi criada como um indexador universal e uma quase-moeda, recuperando, em sequência inversa, as funções perdidas pelo cruzeiro.
Assim, a URV coordenou preços, na medida em que todos seguiram o mesmo indexador, tornou-se unidade de conta e, em seguida, já como real, meio de pagamento e reserva de valor.
O leitor entende bem a grandeza e o brilhantismo da idéia, aliás já reconhecida nos meios acadêmicos internacionais.
Mas quando descreve a política cambial, outro ponto chave do Plano Real, Franco fica devendo. Ele não responde à questão que deve estar na cabeça de todos os leitores: por que o Banco Central deixou a cotação do dólar cair tanto, até chegar aos R$ 0,82?
A pergunta é relevante. Se há uma unanimidade entre os economistas, favoráveis ou contrários ao Plano Real, é a crítica à excessiva valorização do real (ou excessiva desvalorização do dólar).
Pode-se cobrar essa resposta de Franco porque ele, além de integrar o time dos teóricos do Real, é também, como diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central, o operador direto da taxa de câmbio.
Mas a resposta falta. Provavelmente porque o câmbio foi o ponto mais polêmico dentro do governo.
No nível teórico, Franco argumenta, com a exatidão habitual, sobre os problemas que podem ser causados por uma excessiva valorização da moeda local. Mas e a prática dos R$ 0,82 por dólar?
Com o plano em andamento e ainda participando do governo, Gustavo Franco deve ter evitado o tema para não dar chance a um novo bate-boca. Ou talvez não queira admitir um equívoco.
Há um pequeno sinal de que esta pode ser a explicação. Quando descreve a evolução do Plano Real no segundo semestre de 1994, Franco deixa escapar que o vertiginoso crescimento das importações foi ``surpreendente".
Aparentemente, na análise de Franco, esse foi o único fato importante que não estava nas previsões. Mas por que o crescimento das importações teria sido ``surpreendente"com o dólar tão barato e a atividade econômica tão forte?
A esse nível de generalidade, não há controvérsia. E o assunto morre aí, no livro de Franco, ficando o debate para a prática da política econômica. A mesma questão aparece, aliás, quando se trata da taxa de juros, do desaquecimento da economia e da entrada de capital especulativo.
Franco e FHC, autor do prefácio, rejeitam os juros altos, a recessão, o capital de curto prazo, mas admitindo que tudo isso pode ser praticado por um certo tempo e sob certas condições. Que não constam do livro.
Não é, entretanto, pecado grave. O livro, com três textos inéditos e os demais reescritos, é, da primeira à última página, um monumental ensaio sobre o fenômeno da inflação e sobre a história da inflação brasileira. Confirma o prestígio de Franco como um dos mais importantes acadêmicos, no Brasil e no exterior, no ramo da inflação e reforma monetária.
Tem um certo triunfalismo. Franco chega a definir o Plano Real como ``uma das mais gigantescas e bem urdidas reformas monetárias que a História registra". Linhas adiante, porém, cai na real. O real passa a ser um ``simples plano de combate à inflação fundado na boa técnica econômica", cuja consolidação depende das grandes reformas na economia brasileira, de modo a garantir um equilíbrio financeiro permanente do setor público.
E quem teria bolado a URV? Franco não diz. FHC, no prefácio, dá uma pista. Diz que os ``prolegômenos" da URV pertencem a Pérsio Arida e André Lara Resende; que Edmar Bacha deu ``solidez" à idéia e que Franco entrou na história com ``equações que não fechavam nas (primeiras) discussões".

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