São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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Fantasmas perversos na guerra nos Bálcãs

ZELJKO LOPARIC
ESPECIAL PARA A FOLHA

O mundo inteiro está estarrecido com a violência da guerra nos Bálcãs. É bem verdade que a ``limpeza étnica" já foi praticada antes. Os campos de concentração tampouco são novidade. Mas os estupros em massa, ocasionalmente seguidos de degolamento, são uma inovação. Pela primeira vez, que se saiba, numa guerra, a violência sexual é usada de maneira sistemática como arma de genocídio.
Em 1992, dezenas de milhares de mulheres muçulmanas foram violentadas pelos sérvios com o intuito de quebrar a coesão social da comunidade muçulmana da Bósnia e Herzegovina (para os islamitas ortodoxos, a mulher estuprada é adúltera) e assim tornar impossível a sua resistência à agressão exterminadora.
A violência nos Bálcãs tem uma longa história. Os imperadores greco-bizantinos costumavam cegar, em massa, os soldados dos exércitos eslavos vencidos. O conde Drácula aprendeu a empalar os soldados que aproximava com adversários mais cruéis ainda: os turcos. A história invadiu o imaginário regional, que criou os vampiros.
Não surpreende, portanto, que os melhores estudiosos dos fenômenos psicopatológicos, em Viena do começo do século, tenham, volta e meia, tirado seus exemplos dos Bálcãs, fundo de quintal do Império Austro-Húngaro.
Nem sempre os exemplos eram negativos. Freud abre a sua "Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901) contando que, durante uma viagem de Dubrovnik (Croácia) a Herzegovina, conversando com um desconhecido, ele esqueceu o nome do pintor italiano Signorelli, autor dos afrescos ``Quatro Últimas Coisas" (Morte, Juízo Final, Inferno e Céu) em Orvieto. Freud explica que tal aconteceu porque, num momento anterior da conversa, quando falavam dos ``costumes dos turcos" da Herzegovina, ele suprimiu um traço desses costumes.
A saber, que, para os muçulmanos dessa região, o prazer sexual tem valor superior a qualquer outra coisa e que, no caso de distúrbios sexuais, eles caem em desespero, em contraste claro com a resignação geral que demonstram em relação à morte. ``Quando isso chega ao fim, a vida não tem mais valor". Dizem eles.
O motivo dessa supressão foi a autocensura: Freud não desejava mostrar diante de um desconhecido que estava fascinado por essa cultura erótica que, embora provinciana, enquadrava-se bem melhor nas suas próprias idéias sobre ``as últimas coisas" do que a hipocrisia vigente em Viena. O seu inconsciente, encarregado de banir, da sua memória, tudo o que lembrasse o assunto do sexo e da morte, acabou eliminando também o nome de Signorelli associado ao de Herzegovina, via o alemão ``Herr" (senhor).
Recentemente, ao consultar o clássico "Psychopathia Sexualis, de Krafft-Ebing (ed. francesa de 1950), encontrei de novo episódios balcânicos, relatados desta vez para exemplificar o mal a que Sade deu o nome, sendo que, para minha surpresa, o mesmo material exemplificava o padecimento cuja denominação foi tirada do escritor ucraniano-austríaco Sacher-Masoch. Trata-se da vida e da morte do rei sérvio Alexandre e da sua mulher, a rainha Draga.
Baseado em fontes sérvias, o famoso manual afirma que o relacionamento do casal real teria sido um caso típico de ``masoquismo". Draga começou a sua ascensão social vendendo favores sexuais aos cavaleiros nacionais e estrangeiros (um francês livrou-se dela e da sua falsa gravidez pagando 500 francos da época). O rei Alexandre ficou também interessado nos seus serviços. A futura rainha percebeu logo que podia cativá-lo por um meio especial, os maus tratos: ``Ela o atormentou habilmente para incrementar a sua paixão", fazendo com que caísse numa total ``servidão física e moral".
Sobrou pro povão. Os sérvios tiveram que fazer ``contribuições voluntárias" para pagar os cavalos de luxo do regimento da guarda real. O dinheiro para a canalização de Belgrado foi para a compra do iate real a ser usado no Danúbio. E assim por diante. Draga, conclui Krafft-Ebing, tem lugar certo entre as grandes mundanas da história. Tal como Messalina, Teodora e Lucrecia Borgia, ela é uma ``figura demoníaca" que soube impor ``a sua vontade histérica à fraqueza do marido".
Se a vida amorosa do casal real foi exemplo de uma relação masoquista, a sua morte ofereceria um caso de sadismo na política. Em 1903, os dois foram assassinados ``com uma bestialidade indescritível, semelhante ao assassinato por lubricidade" do tipo sádico. Pois tudo aconteceu na alcova real. O ``criminoso Alexandre e a sua p..." foram primeiro crivados de tiros. O corpo do rei ainda se contorcia quando os assassinos o ``pisotearam e cuspiram na sua cara que virara uma massa ensanguentada".
Morto o rei, agarraram o corpo de Draga e o despedaçaram, cortando ``as mãos, os braços e os pés da desafortunada". Em seguida, ``jogaram esses destroços no jardim, onde já tinham despejado o corpo do rei". ``Cortaram até mesmo os seios e praticaram no baixo ventre uma mutilação horrorosa." No final, obrigaram o cozinheiro do rei a preparar o festim de vitória e ``festejaram até a madrugada, nos aposentos cheios de sangue, com os cadáveres do casal real jazendo nos jardins".
Neste caso, comenta o sempre composto Krafft-Ebing, não existe um motivo sexual. Não obstante, a ``embriaguez pelo sangue" está claramente presente, semelhante à observada em muitas outras cenas de guerra, em que, como diz Lombroso, ``manifesta-se nitidamente a ligação entre a volúpia sexual, a crueldade e a bestialidade". Os regicidas sérvios de 1903 estariam apenas espelhando um traço da condição humana.
A condição humana parece não ter mudado desde os tempos de Freud e Krafft-Ebing. O Dr. Radovan Karadjic, atual líder dos sérvios bósnios e psiquiatra formado, parece ter dela um conhecimento profundo, tirado das suas próprias fontes balcânicas, que vai além dos meros manuais de psicopatologia dos sábios vienenses. Isso se depreende da maneira como concebeu a arma do estupro.
Em 1992, no início da guerra, ele parece ter pensado que destruiria os muçulmanos da Herzegovina e da Bósnia, não tanto por meios físicos, à moda popular dos assassinos do rei Alexandre e da rainha Draga, mas antes de tudo por meios psicológicos. Quando ordenou que as muçulmanas fossem estupradas em massa, ele sabia que as transformava em adúlteras.
Talvez esperasse, ainda, que dessa maneira ``isso" chegasse ao fim para o grupo todo e que, fiéis à sua cultura, eles se resignassem à morte coletiva. Em julho passado o Dr. Radovan Karadjic foi indiciado por crimes contra a humanidade junto ao Tribunal Internacional de Haia, que julga os crimes de guerra na ex-Iugoslávia.

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