São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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FLORESTAN ATACA O CONSENSO

JOSÉ LUIS SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há dez dias morreu o sociólogo paulista Florestan Fernandes, aos 75 anos. Em tempos de consenso -ou aparência de consenso- neoliberal, o sociólogo aparecia como uma das estrelas solitárias da esquerda revolucionária brasileira.
Orgulhoso de sua origem humilde e de ter começado a trabalhar aos seis anos, o que o impediu de completar o curso primário e o levou a se formar no curso de madureza, Florestan não via o destino da ex-URSS como a derrocada do socialismo e do marxismo, nem a globalização como a esperança dos excluídos -ao menos, dizia, enquanto o "capitalismo da fase atual não conseguir uma "equação definitiva para a questão social.
Florestan nasceu em 22 de julho de 1920, em São Paulo. Bacharelou-se em 1943 em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, onde doutorou-se em 1951 e foi livre docente e professor titular na cadeira de sociologia. Ligado ao PT, exerceu pelo partido dois mandatos de deputado federal (1987-1991 e 1991-1995).
Escreveu mais de 50 livros. O problema do desenvolvimento econômico na América Latina é decisivo em sua obra. Em entrevista à Folha (``Mais!", 28/05), o sociólogo chileno Enzo Faletto, co-autor com Fernando Henrique Cardoso do clássico "Dependência e Desenvolvimento na América Latina, citou Florestan como uma das fontes da chamada "teoria da dependência, que nasceu de reflexões sobre o desenvolvimento e é a principal formulação teórica do sociólogo FHC.
A referência de Faletto serviu de mote à entrevista a seguir, sobre a trajetória intelectual de Florestan, uma das últimas concedidas por ele, no final de julho, horas antes de uma internação às pressas na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Uma semana depois, Florestan sofreu um transplante de fígado e, no dia 10 de agosto, morreu em uma sessão de hemodiálise, por erro médico.
Mesmo debilitado, Florestan falou por mais de duas horas, com vigor e lucidez, e só então comunicou o enorme esforço que fazia. Entusiasmado, rememorou seu passado intelectual e analisou a situação atual das esquerdas. Intransigente, recusou-se, de modo categórico, a comentar o governo de FHC. "E isso para não magoar nem a ele nem a mim mesmo, disse o antigo mestre intelectual do presidente.

Folha - É possível, como quer o sociólogo chileno Enzo Faletto, ver em sua obra ao menos uma das origens da "teoria da dependência, formulada pelo próprio Faletto e FHC?
Florestan Fernandes - É muito complicado falar sobre a origem de meu pensamento. Eu me envolvi em várias pesquisas que determinaram, em circunstâncias diferentes, exigências distintas de elaboração interpretativa.
Folha - Quais exigências e em que circunstâncias?
Fernandes - Meu primeiro trabalho, feito em 1941, foi sobre o folclore. Eu me identifiquei muito com esse trabalho. Por minha origem pobre, sou sob certos aspectos um produto da cultura do folclore. Minha experiência de vida me permitiu desvendar muitos aspectos do folclore. Era uma maneira de pensar o que iria acontecer com aquela herança aparentemente morta, mas de fato viva, por exemplo, na socialização da criança.
Folha - O resultado deste trabalho foi o livro "Folclore e Mudanças Sociais na Cidade de São Paulo?
Fernandes - Sim. Eu pensava em fazer um grande trabalho sobre o folclore. Saiu este volume. Procurei mostrar as discrepâncias existentes em certas tentativas de partir do folclore para a compreensão da realidade do presente, sem considerar o fato de que a herança folclórica vem de um passado muito longínquo. Nos folguedos infantis, eu descobri cantigas de roda com restos de romances que deitam raízes na Idade Média, não só de Portugal e Espanha, mas da França, e de outros países europeus.
Folha - Depois disto, o que o levou a estudar os Tupinambá, tema de sua primeira tese, "A Organização Social dos Tupinambá?
Fernandes - Esta tese nasceu do ensino do professor (alemão Herbert) Baldus, no curso de pós-graduação da ELSP (Escola Livre de Sociologia e Política). Ele era muito meu amigo.
Havia na ELSP um seminário aberto para debates. Nele surgiu a idéia, que eu mesmo sugeri, de uma pesquisa sobre os Tupi da Costa, que era como eles chamavam os Tupinambá. Havia muito material sobre eles. Fiz o estudo de vários autores, e foi possível descobrir a consistência dos dados. Parti então para formar uma documentação sobre os índios Tupi.
Uma parte deu origem à minha tese de mestrado, "A Organização Social dos Tupinambá, e depois à minha tese de doutorado, "A Função Social da Guerra nas Sociedades Tupinambá. Esse segundo livro tem muito maior envergadura teórica. E uma tendência para a interpretação mais elaborada.
Folha - Como o sr. vê, hoje, o significado destes seus três primeiros trabalhos?
Fernandes - Os dois trabalhos sobre os Tupinambá definiram todo um momento, em que havia uma grande preocupação pela pesquisa empírica. Dizia-se que na faculdade de filosofia não se fazia pesquisa. Mas se fazia. O que ocorria é que fazíamos pesquisa com um grau de preocupação teórica que nem sempre aparecia nos trabalhos de caráter sociográfico.
Agora, tomados em conjunto, esses três livros alcançam dois momentos da nossa história. Aquele que se mantém no presente, mas vai para o passado, que é o do folclore. E aquele de um passado que se esgotou, mas que explica a nossa história em termos do ponto de partida. É o ponto zero da evolução social do Brasil.
Folha - Qual é a história do trabalho "Negros e Brancos em São Paulo, que o sr. fez com o pensador francês Roger Bastide?
Fernandes - Em 1950, Bastide recebeu um convite da Unesco para fazer uma pesquisa sobre o negro em São Paulo. Eu não queria participar deste projeto porque estava terminando de redigir "A Função.... Mas ele insistiu, e acabei cedendo. Fui co-diretor da pesquisa. Havia US$ 1.000 de colaboração da Unesco: metade ficou com a pesquisadora que trabalhou com Bastide, metade com o pesquisador que trabalhou comigo. E nada mais (risos).
Mas foi o trabalho mais educativo de que participei. Vivi em cortiços, em vários bairros de São Paulo, e sabia muita coisa sobre as condições reais de vida do negro entre nós. Toda essa tentativa de escamotear a realidade não pegava comigo. Por isso, logo de cara, tive um grande problema com o professor Bastide. Ele não tinha uma posição firme com relação a se havia ou não preconceito, se havia ou não democracia racial.
Folha - O que ele argumentava?
Fernandes - Ele dominava igualmente o campo da antropologia, da sociologia e da psicologia. Com hipóteses psicológicas, por exemplo, ele muitas vezes tendia a pensar que certos comportamentos e alegações eram produtos da autodefesa do negro, para se proteger de suas próprias deficiências. Outras vezes, ele pensava que os brancos de fato camuflavam a realidade, sem que, com isso, tivessem a intenção de excluir o negro de participação de certas esferas da vida.
Ele interpretava o Brasil da maneira mais civilizada possível. E aceitava os estereótipos, as auto-avaliações correntes. Eu já vinha predisposto a trabalhar contra elas. Para haver ajustamento entre nós, sugeri a idéia de um continuum, em que a intensidade de discriminação poderia variar de zero até um máximo ``x". Indivíduos brancos e negros podem se colocar nesse continuum. É o que acontece. Não há padronização. Encontra-se gente mais aberta ao convívio inter-racial, gente mais fechada. Gente que discrimina, gente que não discrimina. Era preciso uma hipótese como esta para nós podermos trabalhar sem conflito.
Folha - Como ele reagiu a isso?
Fernandes - Ele felizmente aceitou. E fizemos este livro, que tem, no primeiro capítulo, um corte vertical, desde as origens do negro em São Paulo até aquele momento em que fazíamos a pesquisa. Sabíamos os vários tipos de ocupação dos negros desde a evolução da escravidão até as manifestações finais da desagregação do regime servil.
Uma outra parte do livro é a análise de uma estrutura social em que a transformação da própria estrutura causa a mudança do substrato racial. Há aí um continuum histórico. Lido com uniformidades de sequências. É possível estabelecer ligações entre diferentes situações concretas. Isso permite que se passe de uma análise funcional para uma análise dialética.
Folha - Elas não se contradizem?
Fernandes - Não, elas não se excluem. Se for preciso uma interpretação concentrada em um dado momento, explora-se a análise funcional. Se se lida com a evolução daquela totalidade em transformação, explora-se uma análise que é macro-sociológica. É preciso então usar recursos dialéticos de interpretação.
Folha - Como terminou sua divergência com Bastide?
Fernandes - Nossas interpretações convergiram para a negação da existência de uma democracia racial. Esta foi nossa denúncia mais importante. Aliás, se não havia democracia para branco, por

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